quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Abotoando as ideias

Gosto de reler livros que considero clássicos. Eu costumo dizer que um clássico é um livro sempre novo na estante - sempre que a gente relê, descobre algo que não tinha percebido na primeira leitura. E hoje foi assim, com a releitura de Angélica, de Lygia Bojunga Nunes.
Primeiro preciso sim reafirmar (gostaria de não precisar, mas...) que Angélica é um clássico, embora sei que algumas pessoas não consideram que livros escritos para crianças mereçam essa honra. E, para mim, ele não é um clássico da literatura infantil, é um clássico da literatura brasileira, que eu indico para crianças de 8 a 80 anos. E isso não é para qualquer livro, não!
Bem, vou contar um pouco da história para vocês ficarem com aquela vontade de ler e irem correndo no site da Fundação Casa Lygia Bojunga (http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/afundacao.html) comprar o livro e ainda ajudar essa instituição que tem lindos projetos com crianças carentes, no Rio de Janeiro. A história começa com um dos personagens, Porco, perguntando como é que a gente entra na vida! Ele acha uma porta e entra na vida com tudo, achando tudo lindo, até que dizem que ele tem que ir para a escola. Ele chega entusiasmado, mas lá encontra colegas cruéis que debocham dele e o humilham, por ele ser Porco. Então ele pede ajuda da Noite, para que ela fique bem escura, para que ninguém descubra o que ele vai fazer: encontrar o livro onde está o nome de todo mundo que entrou na vida e alterar seu nome. Ele troca o "c" por "t" e passa a se chamar Porto, e cria um disfarce para esconder sua aparência de Porco. (Um parêntesis, literalmente: isso de trocar de nome - que, na verdade, simboliza a identidade - é realmente uma coisa muito profunda!)


Minha edição de Angélica, de 1983, comprada em um sebo por R$ 1 há mais de 10 anos... Além de ter pertencido ao Eduardo, da 4ª serie da tarde, na folha de rosto está escrito "pertence à Katiane Santos".


E não é que Porto conhece Angélica, uma cegonha que tinha ido embora do seu país e deixado sua família justamente porque se recusava a fingir ser alguém que ela não era? Será que eles vão se dar bem? Será que ele vai contar tudo para ela? Siiiiiim: os dois se gostam muito e um dia Porto dá de presente para Angélica uma ideia: fazer uma peça de teatro para contar sua história para todo mundo. Nesse processo de escrever, montar e apresentar a peça, eles e outros personagens vão se deparar com suas histórias, preconceitos, limites e superações.
Sinceramente, o meu resumo é pobre perto da história e da delícia que é ler esse livro: a linguagem com que Lygia Bojunga escreve é fluida, coloquial, com toques de humor e muita sensibilidade. E trata de temas complexos, como o preconceito, o bullying, o machismo, e a busca da própria identidade e autoestima com muita leveza. Uma das metáforas mais lindas do livro é Angélica trazer um botão na testa, presente de despedida que a família lhe dá para abotoar as ideias. Seu avô lhe diz que "pra gente abotoar as ideias bem abotoadas a gente tem que ter coragem e deixar de fingir o que não é".
Nessa tarde em que a esperança parece escorrer com os grossos pingos de chuva, reler esse livro foi um presente e me fez abotoar bem uma ideia: a de que a coragem que às vezes parece me abandonar sempre volta, junto com uma das suas amigas inseparáveis: a fé.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Em defesa da polis

Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos foi O Senhor das moscas, de Wiliam Golding, publicado no período pós II Guerra Mundial. Eu resolvi adotá-lo como leitura obrigatória para alunos do 1º ano do ensino médio há um tempo, e tive a felicidade de descobrir no livro mais coisas do que eu previa.
Tenho dito com frequência que a literatura, especialmente a de fantasia, tem me trazido as melhores reflexões sobre essa tal de realidade (essa que com o tempo a gente aprende ser muito menos factual e racional do que a gente imagina). No livro de Golding, crianças e adolescentes postos em um avião para fugir da guerra caem em uma ilha deserta. O acidente mata todos os adultos e, sozinhos, os infantes precisam, diante da completa escassez de tudo, organizar-se e sobreviver. Há dois objetos significativos nesse enredo: uma concha, a qual, segundo um dos personagens que instaura uma assembleia, dá a quem a segura o direito à fala e à tentativa de persuasão dos demais; e uma lança, com a qual outro personagem estabelece pela força e pelo medo seu domínio sobre os demais.



Nesse momento em que presenciamos tanta privação, e que se avizinha um período em que essas privações vão se tornar piores (assim como os conflitos advindos delas), eu penso nesse romance e na sua pergunta: na disputa entre a concha e a lança, qual escolheremos? Se abandonarmos a política, resta-nos algo além da guerra? Talvez seja agora o momento de uma decisão radical pela política – não pelo que fizeram dessa palavra, associando-a a tudo de mais ignóbil e vicioso, mas por seu sentido mais essencial: o cuidado com a polis, a cidade, entendida como coletivo humano. É hora de entender que precisamos sair do individualismo e nos comprometer com o outro e com o coletivo. Isso, para mim, é a decisão radical pela política, recusando a guerra, que é o cada um por si (que também recebe, em outras instâncias, o nome de neoliberalismo).

quinta-feira, 26 de março de 2020

Aquela que morre por último


Vou começar mais uma crônica falando do outono e que tenham paciência comigo... Eu amo o outono, a estação em que as coisas mais imprevistas ocorrem na minha vida e na qual,  assim como o azul do céu, tudo se torna mais denso. Mas nesses dias não pude deixar de lembrar daquele maravilhoso título do romance de Steinbeck, O inverno da nossa desesperança – porque parece que a desesperança generalizada chegou uma estação antes, nesse ano...
Antes eu me entristeci com as imagens do vazio das ruas de Roma, agora me entristeço com o vazio das ruas das nossas cidades; e me pergunto se a comoção que me tomou quando vi imagens dos idosos morrendo sozinhos e dos enterros vazios também vai se repetir daqui a pouco, de forma mais dolorosa, quando se passarem aqui. A insegurança nos toma ao pensar na irresponsabilidade, inépcia e perfídia dos nossos governos e elites (para usar palavras elegantes, ainda que não mereçam), que falam banalmente em alguns milhares de mortos como uma conta pequena a pagar para “salvar a economia” que já estava moribunda...
Mas diante de tudo isso, desse outono que parece inverno, eu olho para a minha estante e Carlos me diz mais uma vez para eu ficar firme, pois “havemos de amanhecer”. Cecília me diz também que “a vida só é possível reinventada” – então começo a reinventar esse outono difícil, ensaiando passos de dança na sala, testando receitas; nos intervalos da escrita da tese, rabiscando alguns versos e mandando mensagens cheias de amor, porque esse isolamento está criando uma multidão de carentes...



Então começo a reinventar ainda mais pensando no final dessa quarentena – e como tenho uma imaginação muito fértil, vejo a notícia nos telejornais: gráficos mostrando a queda dos contágios, pessoas festejando ao redor do mundo, jornalistas tentando pegar depoimentos de pessoas eufóricas pulando abraçadas nas ruas...
No Brasil, como tenho dito para todos os meus amigos, as festas juninas de 2020 serão inesquecíveis, com um sabor de liberdade nunca suspeitado; dançaremos as quadrilhas mais animadas do século. E estou até fazendo uma campanha para que as pessoas ponham em prática a letra de Valsinha, do Chico Buarque: serão tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais, que o mundo amanhecerá em paz! Pensando bem, esse será o outono da nossa esperança...
Tudo bem, podem dizer que estou viajando (tem coisa melhor, gente?), que sou sonhadora demais, que vivo no mundo da poesia. Mas quanto mais as notícias desafiarem minha alegria, mais versos eu faço! Só por coragem, como diria o Guimarães Rosa...

quinta-feira, 19 de março de 2020

Trégua com o tempo


Eu aqui de novo em meus diálogos com o Tempo, um dos deuses mais lindos (não resisto, Caetano!)... E agora parece que estamos em trégua, o Tempo e eu. Nesses dias de recolhimento, de ver o mundo pelos canais da tevê aberta (que eu não assistia há meses), de conversar com pessoas queridas pela internet ou pelo telefone, sem sentir o calor delas, Tempo e eu paramos de nos provocar mutuamente. Não, ele não tem passado mais devagar, como eu supunha. Mas eu deixei de olhar o relógio. E de reclamar dele, pedindo que ele não se apressasse tanto. Estamos nos esquecendo mais vezes, deixando-nos passar sem perceber.
Ontem, conversando com um amigo, ele me disse que minhas palavras abriam um portal no espaço-tempo. Eu disse: sou eu não, moço, é a poesia que faz isso. Entre muitos versos, eu realmente tinha ignorado o Tempo. Se ele que é um dos deuses mais lindos fosse também um dos mais tiranos, teria me castigado. Mas não, me deu um presente: eu olhei o calendário e vi que hoje é o equinócio de outono. O verão está se despedindo e o outono vem de manso – eu já o tenho sentido chegar há mais de uma semana. No vento noturno mais fresco, no céu mais densamente azul, uma luz diferente que não sei explicar. Mas o verão, que também não queria ir embora, se fez calor intenso nos últimos dias, e hoje trouxe um céu de chuva para se despedir.
E eu aceno para o outono, minha estação preferida, contemplando o que fica do que passa...   

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O último dia do ano

"O último dia do ano/ Não é o último dia do tempo". Assim começa um poema de Drummond. Desejamos - no fundo, não sabemos - que não seja o último dia. Que haja mais 365 dias, novinhos, prontos para serem preenchidos, no ano que começa daqui a algumas horas. Sabemos também que nada mudará miraculosamente. Mas não resistimos a esse chamado da esperança coletiva: a de que este ano tão duro está acabando, quiçá no próximo podemos recomeçar, senão tudo, algumas coisas, e errar menos, dançar mais, dormir melhor, rir com gosto e com frequência...
Então também eu não resisto e me entrego às reflexões típicas da data. O que fiz deste 2019? Como me defendi do embrutecimento generalizado? O que posso comemorar? Olha, apesar de tudo, não foi pouco. Foi um ano de muitas lágrimas, confesso, mas houve também muitos momentos felizes. Se eu fosse descrever todos, o texto ficaria longo demais, mas resumo algumas coisas que foram realmente importantes: escrevi dois livros ficcionais (um deles já encontrou sua casa editora, em breve vocês saberão, sou péssima em guardar segredos rs), metade da minha tese e dois artigos, um deles já publicado; fiz minha primeira viagem ao Oriente e conheci o Egito; conheci muitas pessoas interessantes e fiz novos amigos; voltei para as aulas de dança e comecei a aprender a dançar tango; visitei pela primeira vez um presídio, onde fiz uma mediação de leitura; conheci novas autoras maravilhosas da literatura brasileira, como a Micheliny Verunschk, a Juliana Leite e a Aline Bei; fiz um curso de roteiro e escrevi meu primeiro roteiro; fiz um passeio de balão pela primeira vez...
Olha, olhando para esta lista resumida, acho que 2019 foi pleno de dores, mas também de aventuras! Eu tenho muito a agradecer ao Divino e a todas as pessoas que trouxeram ao meu 2019 mais abraços, mais leveza, mais poesia, mais música, mais dança, mais amor... E que venha com mais em 2020! Um ano luminoso para todos nós! E que saibamos comemorar o fato de estarmos vivos! Para terminar com palavras de Drummond, havemos de amanhecer:

"Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer".
(Carlos Drummond de Andrade, "O último dia do ano")


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Literatura, afeto e acolhimento

Quando digo que histórias têm poder, que livros transformam a vida das pessoas, muita gente acha que isso é papo de escritora e professora de literatura. Que não é assim para todo mundo, só para algumas pessoas (especiais?). Pois eu insisto que não! Toda vez que eu levo livros e histórias para os mais variados lugares, eu vejo a literatura mexendo nas memórias, sentimentos e pensamentos de qualquer um!
E foi assim segunda-feira, dia 11/11, dia da entrega dos exemplares de Janelas Abertas para as detentas participantes do Projeto Travessia, na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) – e eu ainda estou assimilando tudo o que eu aprendi nesse encontro. Sim, é ilusão achar que nós, professores, sempre ensinamos. Ou que voluntários sempre ajudam. Às vezes somos nós os aprendizes, os ajudados.
Ao chegarmos, um primeiro aprendizado: só se entra no presídio com a roupa do corpo. Até seu documento fica lá fora. E nós, voluntários, sabíamos que dali a algumas horas, pegaríamos nossas bolsas, documentos e iríamos embora. E ainda estou pensando na sensação das detentas de deixar a vida lá fora. Os documentos. A identidade. Os sonhos. Ao som de cada porta pesada que se fecha atrás de nós sem a possibilidade de abrimos e voltarmos.
Mas um segundo aprendizado se sobrepôs ao primeiro: ainda existe vida ali dentro. Quando chegamos à sala de aula em que faríamos a mediação de leitura, algumas mulheres conversavam, outras aguardavam com olhar cansado, e a professora Vima abraçou uma a uma, e eu a segui, me apresentando individualmente a cada uma delas. Fiquei muito tocada com o afeto de toda a equipe de voluntárias com as leitoras – é assim que se referem a elas, não como infratoras, meliantes, criminosas. Ali, naquele espaço de algumas horas, somos todas leitoras, simplesmente compartilhando nossas emoções e reflexões diante de um texto.




E isso foi o mais bonito de tudo! Relatei um pouco do meu percurso, menos como “a escritora” e mais como a menina que morou nos livros nos momentos mais difíceis de sua vida, e que conseguiu sair deles e voltar para a realidade com um pouco mais de coragem para enfrentar um mundo quase sempre cruel e difícil para as mulheres. E como escrever foi minha forma de tentar compreender, de me reinventar, de existir e resistir. Li trechos do livro acompanhados com muita atenção, e depois as leitoras compartilharam suas interpretações.
Houve muito envolvimento da parte delas, e várias ficaram um pouco depois de terminada a seção de leitura para conversar comigo. Duas delas me marcaram muito. Míriam, uma angolana que contou um pouco de sua história e me disse, antes de ir embora: “Eu gosto demais – disse apontando o livro. – Depois que eu comecei a ler as histórias dos livros, eu me sinto com mais coragem para olhar para a minha própria história”. E Natalie, a última das leitoras com quem conversei antes de ir embora, que nos disse, com lágrimas nos olhos, essas palavras inesquecíveis: “Vocês não têm ideia do bem que fazem para nós. Eu digo pros meus filhos: olha só, eu tenho professoras catedráticas, de grandes universidades! E vocês vem aqui, quando ninguém liga pra nós. Vocês fazem a gente se sentir gente! O sistema joga a gente no lixo, mas vocês dão a mão e acolhem”.
Depois dessas falas, o que dizer? Não há palavras, só abraço e agradecimento por elas terem nos mostrado o que já pressentíamos: que nosso trabalho com a literatura precisa exceder as paredes das universidades, os artigos de crítica literária e os congressos, para resgatar sua dimensão mais humana, afetiva e transformadora.
Elas voltaram para suas celas, algumas para o trabalho, com um livro nas mãos. Quando falamos que os livros eram delas, que não precisariam ser devolvidos, elas ficaram muito felizes. Elas se sentiram “gente” quando eu falei que os livros não eram uma doação minha, mas de muitas pessoas, movidas por uma campanha que eu tinha feito nas redes sociais. Então esse texto também é para compartilhar com vocês essa felicidade e agradecer nominalmente a todas as pessoas que fizeram essas mulheres, “jogadas no lixo pelo sistema”, se sentirem mais humanas. Nosso muito obrigada a Lígia Paoletti, Diogo Avelino, Fabiana Tonin, Inês Fidalgo, Erika Anne, Evelise Amgarten, Talitta Silva, Martina Marana, Jussara Favretto, Jô Alvarado, Carolina Duarte, Carolina Marcondes, Cecília Sposito, Thaís Sposito Gonçalves, Natália Soave, Adriana Galvão e Mariana Content. Agradeço também àqueles que entraram em contato com intenção de fazer sua doação depois que já tínhamos atingido a meta desse ciclo, e peço a vocês que nos aguardem – ainda há muitos livros, muita leitura e vida a serem compartilhados. Contamos com vocês!

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Viagem ao redor do meu gramado

Dia desses estava em uma mesa com amigos (existe lugar melhor?), e entre vinhos e conversas, surgiu o assunto sobre viagens. Assunto corriqueiro hoje em dia, pauta aparentemente neutra (em tempos tão intolerantes) para uma conversa casual, tal qual a culinária, cortes de cabelo e esmaltes.
Mas não é que o assunto deu polêmica? É que eu falava risonhamente da minha paixão por viagens ser desproporcional ao ânimo do meu marido pelas mesmas viagens, que quando não é tão inferior ao meu, é inexistente. Perguntei a ele para onde ele queria viajar este ano: escolha qualquer lugar, eu disse, cheia de sonhos: Turquia, Islândia, China... Ele me disse: quero ficar no meu quintal, vendo a grama crescer. Uma releitura de Viagem ao redor do meu quarto, mais aberta, sem paredes?
Diante da reações de “Não acredito!”, “Eu daria tudo para receber uma proposta dessas!”, um dos meus amigos confessou que também não gostava de viajar. Que achava cansativo e chato fazer malas, enfrentar quilômetros, filas e outros contratempos. Que, no fundo, irritava-se com esse imperativo de ter que viajar nas férias. Que isso não passava de mais uma armadilha do capitalismo, a convencer as pessoas de que elas só serão felizes se viajarem, e, portanto, consumirem os enlatados do turismo. É realmente uma análise inteligente, porque viagens se tornaram também um produto que se vende como sinônimo de aventura e felicidade. Quando muitos dos enlatados do turismo não proporcionam nenhuma das duas coisas, necessariamente. E a felicidade pode estar no nosso diminuto pedaço de grama (ou de tapete, ou de sofá)...





Tudo bem, desculpa, podem ficar no seu gramado, eu disse, rindo... Eu até concordo com muitas coisas que eles disseram. Mas, no fundo, eu continuo apaixonada por viajar. Minhas malas tem um poder mágico: quando ficam paradas, começam a emitir um som baixo, que só eu percebo: suas rodas começam a girar sozinhas, me avisando que é hora de sair de novo. A imagem da estrada acompanha meus poemas e sonhos, me encantando com a possibilidade de conhecer algo novo que ficará na minha memória, mais um desenho no interessante mosaico que eu construo da vida.
Em todas as viagens que fiz (não foram muitas, mas tão importantes), houve cansaços e imprevistos. E o mais importante de tudo, houve encontros, pessoas que cruzaram meu caminho (às vezes por poucas horas, às vezes por alguns dias ou semanas) e trouxeram algum significado diferente àquelas paisagens, que deixaram de ser uma propaganda de agência de turismo ou um cartão-postal retocado para ser a minha experiência pessoal daqueles lugares. Porque a maior armadilha do capitalismo não é nos vender viagens (ou qualquer outra coisa), mas querer nos convencer de que estão nos vendendo uma experiência. E isso é algo que ninguém pode nos vender: a experiência é humana, única e irredutível a moedas, códigos de barra e cartões de crédito. E talvez por isso a viagem ao redor do próprio gramado possa ser, para alguns, melhor do que Cancun ou Paris...