segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Crônica natalina (ou anti-natalina???)

Odiava Natais e passagem de ano (que ele se recusava a chamar de reveillon). Era um cético convicto. Não se deixava seduzir por cãezinhos fofos com chapéus de Papai-Noel, nem com luzinhas coloridas nas sacadas, nem com os comerciais com votos de um feliz ano novo com textos de poetas renomados, belas paisangens, vovós e crianças sorrindo, jovens apaixonados se beijando. Às vésperas do Natal, gostava de refugiar-se, segundo suas próprias palavras, em um sítio em Cambuquira,onde construíra uma pequena casa, rústica mas aconchegante. Sem home theater. Sem churraqueira. Sem piscinas com cascatas ou tobogãs. Sem nada que atraísse aquele primo distante com a família, que subtamente poderia ser acomedito com uma saudade incontrolável dele.
Antes que se diga que era um mal amado, um infeliz - a ofensa mais comum àqueles que não se entregam às euforias coletivas, à felicidade superficial e barata - acrescente-se que se considerava bem casado (sem filhos, é claro, pois não queria transmitir a ninguém "o legado da nossa miséria"), tinha muitos amigos e era querido por eles.
Mas ainda assim, um cético convicto. Um dia, numa mesa de bar (onde surgem os melhores inventos, as mais profundas filosofias e são feitas as mais bombásticas revelações), perguntaram-lhe sobre "essa sua mania de não gostar de Natal".
- Zé, você tem que parar com essa sua mania de não gostar de Natal. O que é que tem reunir a família, presentear quem a gente gosta, fazer uma comida especial e agradecer tudo o de bom que a gente teve durante o ano?
- Eu já faço isso sempre! Olho no espelho toda manhã e digo pra mim mesmo: obrigado, Zé, por você ter me dado este pijama, esta escova de dente, esse barbeador...
E risonho, tomava mais um gole de cerveja.
- Estou falando sério, Zé. Você não acha que eu tenho razão?
- Claro! É tudo de bom reunir a família que não se vê quase nunca e todo mundo ficar falando que gosta muito de você, que estava com saudade... Se estava, por que não veio me ver antes? E essa coisa de trocar presente, então... Uns dias antes do Natal seus amigos e parentes começam a dar indiretas do tipo "Nossa, que lindo!", toda vez que você passa com eles na frente de uma vitrine. Ou então seu irmão vem e fala "Meu relógio quebrou, estou esperando pra comprar outro porque fim e começo de ano tem tanta conta pra pagar"...
- Ah, Zé, não é bem assim, você está exagerando. E assim mesmo, se não gosta de tudo isso, podia comemorar só você e a Linda, que, com todo o respeito à sua esposa, é realmente linda...
- A gente já comemora muito todo dia - disse com ar de malícia, levantando o braço e pedindo mais uma gelada.
Não se conformavam. Ele devia estar dizendo aquilo só para escandalizar. Para ser do contra. Mas um deles não se conteve:
- Mas porque você é tão chato assim? Digo no bom sentido, claro, uma pessoa assim tão crítica, tão descrente?
- É que eu me desiludi muito cedo.
Um silêncio pesaroso se espalhou pela mesa enquanto Zé enchia novamente os copos. Era um momento solene, algo de íntimo seria revelado. Todos olhavam Zé enquanto ele sorvia rapidamente a espuma que transbordava do seu copo, esperando que ele contasse episódios tristes de infância, brigas em volta do peru de Natal, cuecas e meias de presente.
- Ahhhh, delícia - e percebeu todos os olhares compassivos sobre ele. - O que que foi, gente? Alguém morreu?
- Provavelmente, todo dia morre alguém - disse um deles - mas estamos esperando você contar que desilusão foi essa!
- Ah, tá... Não é nada muito específico. É que tudo o que eu acreditava na infância era mentira, cara... o coelhinho da Páscoa, o papai Noel, a Vovó Mafalda...
- Vovó Mafalda?
- É, a Vovó Mafalda! Vai me dizer que você não se sentiu apunhalado pelas costas quando descobriu que a Vovó Mafalda era homem?
- Zé, eu estava falando sério...
- Eu também!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O político e a política

Neste segundo semestre de 2011, os dois feriados cívicos - 7 de setembro e 15 de novembro - foram marcados por manifestações contra a corrupção. As datas, que comemoram a Independência do Brasil e a Proclamação da República, incitaram aqueles que se revoltam com a violação da res publica, prática enraizada profundamente na política brasileira. Nada de novo sob o sol!
Porém, algo aparentemente novo foi reforçado pelos telejornais: as manifestações foram divulgadas em redes sociais, e não se relacionavam diretamente à política. O fato, mencionado por todas as reportagens que assisti, me trouxe alguns questionamentos: seria uma tentativa da sociedade civil de se articular e reivindicar maior ética na política? Uma forma de dizer que, independente de posturas político-ideológicas, precisamos exigir transparência e compromisso como o bem público? Ou seria mais um ato público cujas repercussões na vida prática seriam muito pequenas ou nulas?
Eu queria ser uma pessoa otimista e dizer que acredito nas duas primeiras hipóteses, mas minha observação da realidade me faz acreditar na terceira. Sempre que vejo estas manifestações, com pessoas usando narizes de palhaços e empunhando faixas contra os políticos corruptos, penso na estranha relação que o povo brasileiro, em geral, têm com a política. Sim, neste caso, a diferença de gênero, em nosso país, é bem pouco refletida, e isso vai muito além da gramática. A maioria das pessoas não vê a política como um conjunto - de ideias, regras e ações - que rege as relações de poder, o controle social, os bens materiais e imateriais de uma coletividade. Geralmente, elas confundem a política com o político - pessoa que ocupa um cargo público, para criar projetos e leis, ou para executá-los - ou suas instituições oficiais - a prefeitura, a câmara municipal, o congresso nacional etc.
Ao dizer que essas manifestações não tem relação com a política, alguns jornais poderiam dizer que elas talvez não tenha relação com os políticos, com partidos, siglas, ideologias específicos. Seria mais apropriado, mas ainda assim, questionável. Pois por traz da postura "apolítica" de algumas pessoas, vislumbramos uma tácita concordância com o status quo. E ainda que se releve discordância, no caso desses cidadãos que se revoltam contra a corrupção, é interessante observar a análise (ou falta dela) que fazem deste fenômeno social.
Que me perdoem os cientistas políticos ou sociólogos se uso de forma equivocada o termo "fenômeno social", sejam pacientes, pois não tenho qualquer formação acadêmica nesta área. Eu uso esse termo porque acho que a corrupção, em nosso país, excede a moral individual e toca à (i)moralidade coletiva. É fato que o Brasil possui uma aceitação social da corrupção, haja vista o número de pessoas que acham "normal" quando alguém "leva um por fora" em determinadas transações. E não falo de coisas do alto escalão, de quantias fabulosas. Falo de coisas muito cotidianas: aquele síndico que aceita um "presente" do empreiteiro que acaba escolhendo para fazer a reforma do telhado do condomínio, por exemplo. E se pararmos para pensar, vamos perceber uma série de atitudes de pessoas de bem, respeitáveis, que se aproveitam do trabalho (e do dinheiro) alheio: não pagando empregados ou prestadores de serviço (falta dinheiro para isso, mas não para trocar de carro, viajar pra Maceió etc), fazendo aquele gato da TV a cabo (hoje modernamente disfarçado num aparelho que "pega todos os canais de graça"), comprando DVDs e CDs piratas de camelôs. Não, mas isso não é corrupção! Corrupção é só no Congresso, lá em Brasília.
Ressalvo que não estou dizendo que pessoas que têm tais atitudes são absolutamente indignas, pois o ser humano é um poço de contradições! Nem estou afirmando que todas as pessoas que participam destas manifestações são assim. Há pessoas íntegras e bem intencionadas que protestam, mas estas vão além do cartaz, do grito, da foto no facebook. Por que, no fundo, tais passeatas não deixam de ter seu apelo midiático, seu cunho apoteótico, cujo barulho repercute mas é improdutivo. Foi assim com tantos movimentos políticos, no Brasil contemporâneo. Muito barulho, pouca ação prática e cotidiana mais duradoura. Quem não se lembra dos caras-pintadas do início dos anos 90? Passado o impeachment do presidente Collor (que não ocorreu pela ação deles, absolutamente), qual foram as ações efetivas do movimento estudantil no restante de uma década de tantas transformações econômicas e sociais que repercutiram na Educação, entre outras coisas? Eu não vi este movimento se levantar na criação da LDB da Educação de 1996, que não apenas tirava do ensino técnico o grau de ensino médio (2o grau, na época), como proporcionou, de certa forma, o desenvolvimento astronômico do ensino superior particular no Brasil, paralelamente ao descaso com o ensino superior federal observado em todo governo FHC.
As manifestações públicas são um direito dos cidadãos, fundamental na prática democrática. Entretanto, é preciso refletir sobre a corrupção e a política de forma mais aprofundada, e agir nas pequenas e grandes atitudes do dia a dia. Os políticos não vieram de Marte - são reflexos da nossa sociedade. E se são corruptos, antes de atirarmos pedras neles, é melhor que nos olhemos no espelho sem embustes e analisemos seriamente se a palavra ética é para nós mais um vocábulo bonito para se usar nos discursos, mas pouco significativo em nossa vida diária.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Culinária, amor e filosofia

Terminei meu último post falando de comida, e algumas pessoas comentaram comigo que acharam muita graça na frase: "O que seria dos filósofos sem a comida?". Então eu resolvi ampliar a frase: o que seria dos filósofos, dos poetas, dos artistas, dos amantes, enfim, de todos nós, sem a comida?
E não estou me referindo apenas à questão óbvia da sobrevivência. É que, para mim, a coisa vai além da simples ingestão de alimentos. Cozinhar e partilhar a mesa são atos culturais e dotados de um significado incrível na minha vida. A gente conversa enquanto faz refeições; enquanto cozinha, filosofa, pensa na vida, tem até uns insights para aquele projeto, é visitado por alguns versos, batuca nas panelas aquele samba preferido e até dá uns passos de dança. E o prazer de cozinhar com ou para uma pessoa amada? Aquela noite fria em que se decide preparar um jantar a quatro mãos, mesmo que seja o mais simples, um cotidiano omelete, um macarrão com sardinha - mas cheio de sabor e de esbarros deliciosos pela cozinha? Eu adoro cozinhar assim, de preferência bebendo um bom vinho e beliscando alguma coisa (beringelas no pão italiano, por exemplo... Ai, que já está me dando fome!).
Claro que tudo isso acontece quando a gente se dá tempo para cozinhar, para comer; há dias que, infelizmente, a gente agradece por ter sobrado um pratinho da janta, que a gente põe no microondas, come rápido e sai correndo... É a vida! 
Mas há aqueles dias em que gente acorda inspirada. Pensa no cardápio, sai de casa para comprar os ingredientes (de preferência em feiras ou mercados) e já começa a se refestelar com as cores dos legumes e o cheiro dos temperos frescos (manjericão e alecrim são campeões neste quesito). E tem dias que, como eu digo, baixa a Tia Nastácia em mim. Quero fazer bolos, biscoitos, pão de queijo - tudo que lembre aquele café da tarde da nossa infância no interior. Dia perfeito para chamar as amigas para conversar, ou, como eu costumo dizer, "fazer terapia de grupo com comida"! Adoro convidar pessoas para jantar - a mesa agrega a humanidade!
E há aqueles momentos também em que a comida é remédio. Ela cura aquelas dores profundas da alma. Quem nunca, num dia triste, parou e pensou: "Preciso de um quindim" (tudo bem, mulheres, vocês podem substituir por chocolate!). Melhor ainda quando a gente pensa: preciso da comida da minha mãe. Uma vez, há anos, eu estava muito cansada, e, junto com o stress, estava sofrendo com uma super dor de cotovelo. Daquelas que inflamam e duram anos, sabe? Liguei para minha mãe e disse que iria à sua casa, era uma tarde chuvosa de junho e eu pedi que ela fizesse mingau de maizena para mim. Sei que vocês estavam esperando a descrição de uma iguaria mais elaborada, mas eu sou sincera. Minha mãe e avó costumavam fazer mingau de maizena para mim e minhas irmãs, na infância, especialmente em dias de chuva (quando ninguém saía para ir à padaria). Então, já uma criança de uns 25 anos, comecei a tomar aquele mingau quentinho, docinho, e a cada colherada eu sentia uma sensação de familiaridade, um alívio, uma certeza de que tudo iria passar, que nada era tão ruim assim. Afinal, como dizia um velho amigo: "Não existe tristeza, você é que está mal alimentada". Ou numa versão Joelma (essa baiana desnaturada que voltou para sua terra, e que faz uma dobradinha de comer rezando): Qualquer problema parece muito menor com o bucho cheio!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os mistérios da maçã

Sei que esse título, tão sugestivo, pode levar os leitores a pensar que falarei de algo proibido e delicioso, mas sinto decepcioná-los: a maçã do título se refere tão somente ao nome e logo da empresa mais falada no dia de hoje, a Apple, cujo fundador, Steve Jobs, faleceu, vítima do câncer, essa doença cruel que não faz distinção entre ricos e pobres, homens e mulheres, gênios ou néscios.
Não se pode negar que Steve Jobs era um ser humano acima da média, no que se refere à inteligência e habilidade nos negócios. Afinal, ele ajudou a construir uma era, na qual o computador é parte fundamental da vida e da comunicação entre as pessoas. Entretanto, não posso me furtar à sensação de perplexidade diante da comoção que sua morte ocasionou. Flores, bilhetes com mensagens amorosas (como "Nunca te conheci, mas você mudou minha vida", "Eu te amo e vou sentir sua falta") e lágrimas de fãs nos dão a impressão de estar acompanhando o funeral de alguma celebridade pop, de algum atleta ou cantor famoso.

                                                Campbell's soup cans, Andy Warhol (1964)

Diz um verso lindo: "Não perguntes por quem os sinos dobram, dobram por ti". Acredito que a morte de qualquer ser humano relativamente jovem e cheio de possibilidades deve nos atingir. Mas diante da insensibilidade dos nossos tempos ao que é realmente importante, pergunto-me o que significa essa comoção e, sobretudo, a relação emocional que muitas pessoas têm com a marca Apple.
Marx dizia, resumindo grosso modo, que uma das grandes estratégias do capitalismo era criar necessidades, para vendê-las. Pois, estendendo a ideia, acho mais hábil ainda a estratégia de transformar o objeto em sujeito (no plano oposto mas complementar à reificação do homem). Em outras palavras, as coisas deixam de ter seu valor apenas enquanto objeto, e passam a ser aquilo que simbolizam numa sociedade, ou mesmo são tratadas com uma deferência de pessoa. Assim, habilmente, uma tendência de consumo torna-se um estilo de vida. É assim, parece-me, que se sentem os consumidores da Apple. Eles não são meros consumidores, são fãs. É como se, ao comprar um computador, um i-pad, um i-phone, um i-qualquer coisa que tenha a marca Apple, eles agregassem conceitos, valores, identidades às suas vidas. Essa impressão me veio no lançamento de muitos produtos da marca, e se confirma na reação comovida à morte de um dos seus co-fundadores. Um gênio, é claro. Mas quantos deles já não faleceram sem notas na imprensa, sem flores, sem o reconhecimento de sua dedicação à ciência, à arte, à tecnologia, à humanidade?
Ainda pensando na transformação do objeto em sujeito, penso na inversão da relação entre o meio e o fim. Não há dúvidas de que o computador e, sobretudo, a internet, ampliaram as formas de comunicação, mas não se pode esquecer que ambos são meios, são ferramentas. A finalidade é a própria comunicação, o próprio conhecimento, anteriores ao computador - este e qualquer meio tecnológico é que deve a eles, e não o contrário! Acho risível alguns comerciais de provedores de internet e seu falacioso argumento de que eles trarão às crianças e adolescentes mais estudos e melhores notas. Sem desmerecer os muitos recursos didáticos que o computador trouxe, tais recursos são absolutamente ineficientes sem a curiosidade, a vontade de aprender, o esforço de ler e pensar. Como disse uma vez uma propaganda (não sei se de celulares ou computadores, não me lembro): "Não adianta a banda larga, se a mente é estreita".
Esse post está ficando muito longo, mas não sei como terminá-lo e ainda não esgotei as minhas ideias - aliás, acho que talvez leia isso amanhã e me venham outras, o que faz parte do meu caótico processo filosófico.

P.S. - Este post é dedicado ao Odirley, que me instilou (como a serpente questionadora, aproveitando a sugestão bíblica do título) muitas das ideias críticas deste post, conversadas no café da manhã, nos almoços e jantares. Ah, o que seria dos filósofos sem a comida?



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A música sertaneja também ensina

O cantor Marrone (da dupla sertaneja Bruno e Marrone) parece não ter ficado contente com sua última bola fora, quando pilotou um helicóptero sem a formação necessária e licença legal para isso, causou um acidente e deixou uma pessoa em estado grave no hospital, em maio deste ano. Parece que ele está se esforçando seriamente para queimar sua imagem: em um show realizado recentemente nos EUA, Marrone fez piadas de péssimo gosto, reforçando a imagem das mulheres submissas no casamento (confundindo esposa com empregada doméstica) e ofendendo explicitamente as brasileiras, chamando-as de "piranha". Obrigada, Marrone, por ajudar a divulgar o preconceito contra as mulheres brasileiras no exterior - o mundo já nos olha como prostitutas, mas sempre é possível piorar um pouco a nossa imagem lá fora!
Abaixo o vídeo para que vocês ouçam as bobagens com seus próprios ouvidos. Sei que parece perda de tempo, mas é bom para se convencer de que, embora pareça piada, o assunto é sério e muitas pessoas realmente pensam assim. Aliás, posso apostar estes dedos que agoram teclam que o cantor vai se retratar na imprensa dizendo que era "só uma brincadeirinha, imagine, eu respeito muito as mulheres".


terça-feira, 4 de outubro de 2011

A propaganda ensina

Sou uma leitora compulsiva, leio tudo que me cai nas mãos, e até o que não me cai nelas e ficam diante dos olhos - placas, filmes, novelas, progagandas. Sento em frente à televisão para descansar, mas não consigo não pensar diante dos textos que me aparecem.
Um deles foi uma série de propagandas intitulada "Hope ensina", da famosa rede de roupa íntima feminina, encenada por, nada mais, nada menos, Gisele Bündchen. Nos anúncios, a musa das passarelas ensina a nós, mulheres, como se deve dar notícias aos maridos. Confira alguns:







Só por apresentar uma mulher considerada símbolo de beleza e sensualidade, em roupas íntimas, a propaganda já chamaria a atenção, mas chamou a minha por seu implícito conteúdo machista, velado, como na maioria das vezes, pela perspectiva do humor. Felizmente, essa percepção não foi apenas minha (esse país tem muitas mulheres inteligentes!), pois a propaganda foi suspensa nos meios televisivos desde a a semana passada, e está sob processo do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), depois de manifestação de repúdio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).
Quando acontece algo do gênero - a suspensão de uma propaganda por questões éticas - é interessante observar, em sites da web, os comentários que seguem as reportagens que a noticiam. Em vários sites, li coisas do tipo "Não tem nada a ver, a propaganda só é engraçada, não deprecia a mulher". Um deles dizia que "feministas hardcore estavam deturpando a propaganda, criando preconceitos", seguido por outro que dizia que "o que as feministas estavam precisando é de Hope". A maioria dos comentários se mostrava contrária às manifestação da SPM e do CONAR, ou sob alegação de censura, ou de que as mulheres estavam "viajando", pois a propaganda "enaltecia a beleza da mulher, ao invés de ofender".
Que me desculpem os ingênuos de plantão (aqueles que não veem maldade em nada e que riem de tudo), mas os anúncios têm evidente conteúdo depreciativo à mulher. Reforçam os estereótipos da mulher consumista (que estoura o cartão de crédito do marido), que dirige mal (bate o carro do marido repetidas vezes) - colocando a imagem da dependência da mulher em relação ao homem - e que, incapaz de bons argumentos, tem que usar o corpo para convencê-lo. Esse sem dúvida é o estereótipo mais perverso: desprovida de bens (seja a conta bancária, o carro ou a inteligência), resta à mulher brasileira utilizar o sexo como arma de convencimento.
Tudo isso aprendemos em livros, novelas, propagandas, piadas - imagens poderosas que povoam nosso inconsciente coletivo. Daí o perigo de não percebermos que se trata sim de mais uma forma sutil de depreciação da mulher. A grande arma do machismo contemporâneo é a falácia de que ele não existe, apenas porque as mulheres podem trabalhar fora e votar. Conquistas importantes, sem dúvida, mas que não são suficientes.
Devemos aprender sim com as propagandas - sobretudo a questioná-las. Que fique claro que não sou contra a publicidade. Ela não cria preconceitos, ela apenas reflete os que existem na sociedade. E como qualquer texto, deve ser lida criticamente.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Zombando das grades

Ah, a poesia nunca me pede licença, posso entrar? Não, entra sem bater na porta, quando entra pela porta e não pula portões, janelas, daquele jeito que minha finada vó Júlia dizia que não devíamos fazer, meninas educadas que éramos ou que queríamos ser, mas não resistíamos às saias dos nossos vestidos esvoaçando sobre as grades, nossos pés descalços pisando sobre as grades, nossos sorrisos zombando das grades.
A poesia passa pelo vão das grades. É o sol que vejo ainda quando fecho a cortina, um vento que me faz parar para pensar na direção do ar que flui de tantos pulmões, emoção em estado bruto. É a dança que existe no bailarino estático, que usa cada ínfimo músculo para segurar o tempo ou que recolhe toda a energia para a explosão, o salto extático.
Não se pode conter o salto, não se pode conter o verso. Mas não entro surdamente no reino das palavras, elas que entram ruidosamente no meu quarto alaranjado pela luz da tarde.

sábado, 27 de agosto de 2011

Pereirão além da estampa

Nesta semana, a rede Globo de televisão iniciou mais uma novela - o bom e velho folhetim televisivo, tão desprezado por nossa intelectualidade e amado por pessoas de todas as classes sociais. O que os intelectuais ignoram é que a telenovela brasileira é patrimônio nacional, faz parte da nossa cultura, do nosso imaginário, da nossa educação narrativa. Não se pode desprezar a importância de um objeto como esse. Por outro lado, o que os amantes das novelas ignoram é que esse objeto tem se empobrecido na medida em que suas tramas e recursos expressivos se repetem à exaustão, bem como seus personagens reproduzem estereótipos que passam longe, por vezes, da complexidade do ser humano.
E por falar em estereótipos, as protagonistas de "Fina Estampa" não fogem deles, aparentemente. Teresa Cristina é a típica mulher rica, fútil, mimada. A megera que maltrata seus empregados, inferniza o marido, controla a vida dos filhos (ou, pelo menos, tenta). No polo oposto, Griselda Pereira, mais conhecida como "Pereirão", marido de aluguel, é a mulher trabalhadora, chefe de família, que quebra os preconceitos: é independente, não se importa com sua aparência, com futilidades (ela tem 3 filhos e um neto para criar, como declara a todo instante para outros personagens). Será mesmo?
A personagem de Pereirão é, obviamente, aquela que cativa a simpatia do público brasileiro, que se identifica tanto com sua batalha diária, com suas dificuldades, quanto com sua defesa da família. Ela é a mãe que se sacrifica pelos seus (outro velho e conhecido estereótipo das novelas brasileiras, Manoel Carlos e suas Helenas que o digam!). Mas há algo que me incomoda nessa personagem: ao contrário de quebrar preconceitos e realçar o valor da mulher, Griselda reforça a imagem da mulher que, para se estabelecer profissionalmente, se fortalecer emocionalmente e conquistar o respeito da sociedade, se masculiniza.
No que depilar o buço, passar um batom, usar cremes, luvas e ser gentil interfereria na competência de Griselda? Afinal, é possível que uma mulher trabalhe com manutenção e serviços gerais sem se tornar um homem. Apesar desse tipo de serviço ser árduo, exigir roupas confortáveis e que serão sujadas e manchadas de graxa, tinta e outros materiais (como um macacão de mecânico, usado pela personagem), nada impediria que Griselda fosse feminina. Por que a feminilidade não é só uma roupa. É sentimento, identidade, coisas mais complexas...
Mas a roupa de Griselda esconde suas formas femininas (tanto que personagens a chamam de senhor por não reconhecerem uma mulher), símbolo da negação da própria sexualidade. Ela ignora completamente os olhares do belo e apaixonado Guaraci, patrão de seu filho e que enxerga a mulher por trás da máscara masculina. A pergunta que me fica é: é preciso negar a sexualidade para ser a mãe exemplar e mulher forte? O corpo, a sexualidade feminina, nessa ótica, seria uma fonte de fraqueza?
Obviamente, a imagem que a trama pretende passar é de uma mulher que se tornou forte. Mas volta a pergunta: é preciso ser homem para ser forte? Quando Griselda enfrenta um cliente que não quer pagar seus serviços, alegando que vai quebrar o que fizera, e ainda responde agressivamente a um grupo de homens que assistia a discussão, num quiosque de praia, um deles declara: "Isso é que é macho!".
Chamar para a porrada, tradicionalmente, é mesmo coisa de homens (eu, como pessoa e mulher, acho que há maneiras mais inteligentes e menos danosas de se resolver os problemas do que a violência física). Mas discutir, reclamar seus direitos e enfrentar um homem que os desrespeita não. Isso é coisa de mulher forte, também. Assim como trabalhar de sol a sol, sustentar uma família, se desdobrar entre a jornada de trabalho e a criação dos filhos e netos.
Coisa que vai muito além da estampa. Mulheres fortes fazem tudo isso sem perder a feminilidade (mesmo que o dinheiro e o tempo seja curto, ou que muitas vezes a sutileza fique de lado e elas tenham que se impor de forma mais agressiva). Nesse ponto, as mulheres brasileiras são professoras!

Ela sempre volta

Alguns meses se passaram sem que eu passasse por aqui. Peço desculpas aos meus poucos leitores!
A poesia parecia ter me abandonado, sufocada entre as obrigações morais e civis (como diria o Pessoa).
Mas ela voltou e nesta semana tive uma overdose - escrevi três poemas. Um deles aqui vai, os outros ainda estão dormindo em seus arquivos, não estão prontos para exibir-se aos olhos do mundo.


Prece à Primavera

Suplico-lhe, adorada Primavera,
que não venhas.
Não posso mais florir.

Guarda tuas gotas
tuas chuvas benfazejas
peço-te, não me provoques

com teus dedos úmidos
com sussurros de pólen
e sementes à espera.

Suplico-lhe, misericordiosa,
não me torture
com tulipas
lábios de lisianto
beijos de borboleta.

Não posso mais florir.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Poesia no Boteco


Adoro bares, botecos... Não, não é mais uma das minhas declarações de bebum! A bebida, de fato, não é o centro do bar. É a mesa! É ela que agrega as pessoas, une as mais diferentes opiniões. É o espaço da piada, da discussão política, da amizade, da paquera, da contemplação do fim da tarde e da vida.
Outra coisa que adoro é poesia. E não é que meu amigo Pedro Marques uniu as duas coisas? No dia 03 de junho, ele lançará no Tonico's Boteco (bar de primeiríssima qualidade) seu livro de poemas Clusters.
Tive o prazer de conhecer e conviver com Pedro quando fazia graduação em Letras, na UNICAMP. O tempo passou, deixei os bancos da universidade, ele continuou no meio acadêmico, agora como professor, mas continuamos poetando. Inclusive nos meios eletrônicos: confiram o site PoesianaMao.com.br.
E não percam o lançamento. Eu estarei lá, curtindo os amigos, a poesia e o boteco. Tem coisa melhor?