quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Culinária, amor e filosofia

Terminei meu último post falando de comida, e algumas pessoas comentaram comigo que acharam muita graça na frase: "O que seria dos filósofos sem a comida?". Então eu resolvi ampliar a frase: o que seria dos filósofos, dos poetas, dos artistas, dos amantes, enfim, de todos nós, sem a comida?
E não estou me referindo apenas à questão óbvia da sobrevivência. É que, para mim, a coisa vai além da simples ingestão de alimentos. Cozinhar e partilhar a mesa são atos culturais e dotados de um significado incrível na minha vida. A gente conversa enquanto faz refeições; enquanto cozinha, filosofa, pensa na vida, tem até uns insights para aquele projeto, é visitado por alguns versos, batuca nas panelas aquele samba preferido e até dá uns passos de dança. E o prazer de cozinhar com ou para uma pessoa amada? Aquela noite fria em que se decide preparar um jantar a quatro mãos, mesmo que seja o mais simples, um cotidiano omelete, um macarrão com sardinha - mas cheio de sabor e de esbarros deliciosos pela cozinha? Eu adoro cozinhar assim, de preferência bebendo um bom vinho e beliscando alguma coisa (beringelas no pão italiano, por exemplo... Ai, que já está me dando fome!).
Claro que tudo isso acontece quando a gente se dá tempo para cozinhar, para comer; há dias que, infelizmente, a gente agradece por ter sobrado um pratinho da janta, que a gente põe no microondas, come rápido e sai correndo... É a vida! 
Mas há aqueles dias em que gente acorda inspirada. Pensa no cardápio, sai de casa para comprar os ingredientes (de preferência em feiras ou mercados) e já começa a se refestelar com as cores dos legumes e o cheiro dos temperos frescos (manjericão e alecrim são campeões neste quesito). E tem dias que, como eu digo, baixa a Tia Nastácia em mim. Quero fazer bolos, biscoitos, pão de queijo - tudo que lembre aquele café da tarde da nossa infância no interior. Dia perfeito para chamar as amigas para conversar, ou, como eu costumo dizer, "fazer terapia de grupo com comida"! Adoro convidar pessoas para jantar - a mesa agrega a humanidade!
E há aqueles momentos também em que a comida é remédio. Ela cura aquelas dores profundas da alma. Quem nunca, num dia triste, parou e pensou: "Preciso de um quindim" (tudo bem, mulheres, vocês podem substituir por chocolate!). Melhor ainda quando a gente pensa: preciso da comida da minha mãe. Uma vez, há anos, eu estava muito cansada, e, junto com o stress, estava sofrendo com uma super dor de cotovelo. Daquelas que inflamam e duram anos, sabe? Liguei para minha mãe e disse que iria à sua casa, era uma tarde chuvosa de junho e eu pedi que ela fizesse mingau de maizena para mim. Sei que vocês estavam esperando a descrição de uma iguaria mais elaborada, mas eu sou sincera. Minha mãe e avó costumavam fazer mingau de maizena para mim e minhas irmãs, na infância, especialmente em dias de chuva (quando ninguém saía para ir à padaria). Então, já uma criança de uns 25 anos, comecei a tomar aquele mingau quentinho, docinho, e a cada colherada eu sentia uma sensação de familiaridade, um alívio, uma certeza de que tudo iria passar, que nada era tão ruim assim. Afinal, como dizia um velho amigo: "Não existe tristeza, você é que está mal alimentada". Ou numa versão Joelma (essa baiana desnaturada que voltou para sua terra, e que faz uma dobradinha de comer rezando): Qualquer problema parece muito menor com o bucho cheio!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os mistérios da maçã

Sei que esse título, tão sugestivo, pode levar os leitores a pensar que falarei de algo proibido e delicioso, mas sinto decepcioná-los: a maçã do título se refere tão somente ao nome e logo da empresa mais falada no dia de hoje, a Apple, cujo fundador, Steve Jobs, faleceu, vítima do câncer, essa doença cruel que não faz distinção entre ricos e pobres, homens e mulheres, gênios ou néscios.
Não se pode negar que Steve Jobs era um ser humano acima da média, no que se refere à inteligência e habilidade nos negócios. Afinal, ele ajudou a construir uma era, na qual o computador é parte fundamental da vida e da comunicação entre as pessoas. Entretanto, não posso me furtar à sensação de perplexidade diante da comoção que sua morte ocasionou. Flores, bilhetes com mensagens amorosas (como "Nunca te conheci, mas você mudou minha vida", "Eu te amo e vou sentir sua falta") e lágrimas de fãs nos dão a impressão de estar acompanhando o funeral de alguma celebridade pop, de algum atleta ou cantor famoso.

                                                Campbell's soup cans, Andy Warhol (1964)

Diz um verso lindo: "Não perguntes por quem os sinos dobram, dobram por ti". Acredito que a morte de qualquer ser humano relativamente jovem e cheio de possibilidades deve nos atingir. Mas diante da insensibilidade dos nossos tempos ao que é realmente importante, pergunto-me o que significa essa comoção e, sobretudo, a relação emocional que muitas pessoas têm com a marca Apple.
Marx dizia, resumindo grosso modo, que uma das grandes estratégias do capitalismo era criar necessidades, para vendê-las. Pois, estendendo a ideia, acho mais hábil ainda a estratégia de transformar o objeto em sujeito (no plano oposto mas complementar à reificação do homem). Em outras palavras, as coisas deixam de ter seu valor apenas enquanto objeto, e passam a ser aquilo que simbolizam numa sociedade, ou mesmo são tratadas com uma deferência de pessoa. Assim, habilmente, uma tendência de consumo torna-se um estilo de vida. É assim, parece-me, que se sentem os consumidores da Apple. Eles não são meros consumidores, são fãs. É como se, ao comprar um computador, um i-pad, um i-phone, um i-qualquer coisa que tenha a marca Apple, eles agregassem conceitos, valores, identidades às suas vidas. Essa impressão me veio no lançamento de muitos produtos da marca, e se confirma na reação comovida à morte de um dos seus co-fundadores. Um gênio, é claro. Mas quantos deles já não faleceram sem notas na imprensa, sem flores, sem o reconhecimento de sua dedicação à ciência, à arte, à tecnologia, à humanidade?
Ainda pensando na transformação do objeto em sujeito, penso na inversão da relação entre o meio e o fim. Não há dúvidas de que o computador e, sobretudo, a internet, ampliaram as formas de comunicação, mas não se pode esquecer que ambos são meios, são ferramentas. A finalidade é a própria comunicação, o próprio conhecimento, anteriores ao computador - este e qualquer meio tecnológico é que deve a eles, e não o contrário! Acho risível alguns comerciais de provedores de internet e seu falacioso argumento de que eles trarão às crianças e adolescentes mais estudos e melhores notas. Sem desmerecer os muitos recursos didáticos que o computador trouxe, tais recursos são absolutamente ineficientes sem a curiosidade, a vontade de aprender, o esforço de ler e pensar. Como disse uma vez uma propaganda (não sei se de celulares ou computadores, não me lembro): "Não adianta a banda larga, se a mente é estreita".
Esse post está ficando muito longo, mas não sei como terminá-lo e ainda não esgotei as minhas ideias - aliás, acho que talvez leia isso amanhã e me venham outras, o que faz parte do meu caótico processo filosófico.

P.S. - Este post é dedicado ao Odirley, que me instilou (como a serpente questionadora, aproveitando a sugestão bíblica do título) muitas das ideias críticas deste post, conversadas no café da manhã, nos almoços e jantares. Ah, o que seria dos filósofos sem a comida?



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A música sertaneja também ensina

O cantor Marrone (da dupla sertaneja Bruno e Marrone) parece não ter ficado contente com sua última bola fora, quando pilotou um helicóptero sem a formação necessária e licença legal para isso, causou um acidente e deixou uma pessoa em estado grave no hospital, em maio deste ano. Parece que ele está se esforçando seriamente para queimar sua imagem: em um show realizado recentemente nos EUA, Marrone fez piadas de péssimo gosto, reforçando a imagem das mulheres submissas no casamento (confundindo esposa com empregada doméstica) e ofendendo explicitamente as brasileiras, chamando-as de "piranha". Obrigada, Marrone, por ajudar a divulgar o preconceito contra as mulheres brasileiras no exterior - o mundo já nos olha como prostitutas, mas sempre é possível piorar um pouco a nossa imagem lá fora!
Abaixo o vídeo para que vocês ouçam as bobagens com seus próprios ouvidos. Sei que parece perda de tempo, mas é bom para se convencer de que, embora pareça piada, o assunto é sério e muitas pessoas realmente pensam assim. Aliás, posso apostar estes dedos que agoram teclam que o cantor vai se retratar na imprensa dizendo que era "só uma brincadeirinha, imagine, eu respeito muito as mulheres".


terça-feira, 4 de outubro de 2011

A propaganda ensina

Sou uma leitora compulsiva, leio tudo que me cai nas mãos, e até o que não me cai nelas e ficam diante dos olhos - placas, filmes, novelas, progagandas. Sento em frente à televisão para descansar, mas não consigo não pensar diante dos textos que me aparecem.
Um deles foi uma série de propagandas intitulada "Hope ensina", da famosa rede de roupa íntima feminina, encenada por, nada mais, nada menos, Gisele Bündchen. Nos anúncios, a musa das passarelas ensina a nós, mulheres, como se deve dar notícias aos maridos. Confira alguns:







Só por apresentar uma mulher considerada símbolo de beleza e sensualidade, em roupas íntimas, a propaganda já chamaria a atenção, mas chamou a minha por seu implícito conteúdo machista, velado, como na maioria das vezes, pela perspectiva do humor. Felizmente, essa percepção não foi apenas minha (esse país tem muitas mulheres inteligentes!), pois a propaganda foi suspensa nos meios televisivos desde a a semana passada, e está sob processo do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), depois de manifestação de repúdio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).
Quando acontece algo do gênero - a suspensão de uma propaganda por questões éticas - é interessante observar, em sites da web, os comentários que seguem as reportagens que a noticiam. Em vários sites, li coisas do tipo "Não tem nada a ver, a propaganda só é engraçada, não deprecia a mulher". Um deles dizia que "feministas hardcore estavam deturpando a propaganda, criando preconceitos", seguido por outro que dizia que "o que as feministas estavam precisando é de Hope". A maioria dos comentários se mostrava contrária às manifestação da SPM e do CONAR, ou sob alegação de censura, ou de que as mulheres estavam "viajando", pois a propaganda "enaltecia a beleza da mulher, ao invés de ofender".
Que me desculpem os ingênuos de plantão (aqueles que não veem maldade em nada e que riem de tudo), mas os anúncios têm evidente conteúdo depreciativo à mulher. Reforçam os estereótipos da mulher consumista (que estoura o cartão de crédito do marido), que dirige mal (bate o carro do marido repetidas vezes) - colocando a imagem da dependência da mulher em relação ao homem - e que, incapaz de bons argumentos, tem que usar o corpo para convencê-lo. Esse sem dúvida é o estereótipo mais perverso: desprovida de bens (seja a conta bancária, o carro ou a inteligência), resta à mulher brasileira utilizar o sexo como arma de convencimento.
Tudo isso aprendemos em livros, novelas, propagandas, piadas - imagens poderosas que povoam nosso inconsciente coletivo. Daí o perigo de não percebermos que se trata sim de mais uma forma sutil de depreciação da mulher. A grande arma do machismo contemporâneo é a falácia de que ele não existe, apenas porque as mulheres podem trabalhar fora e votar. Conquistas importantes, sem dúvida, mas que não são suficientes.
Devemos aprender sim com as propagandas - sobretudo a questioná-las. Que fique claro que não sou contra a publicidade. Ela não cria preconceitos, ela apenas reflete os que existem na sociedade. E como qualquer texto, deve ser lida criticamente.