terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Carnaval, o dicionário e o politicamente correto

Nem tudo é alegria no Carnaval! Não, não vou me referir ao episódio da apuração do desfile das escolas de samba de São Paulo - lamentável (para não dizer ridícula), é claro, mas nem por isso tão relevante a ponto de ser pauta quase exclusiva do Jornal Hoje, exibido pela Rede Globo, no dia 22/02/12.
Refiro-me à uma notícia que vi ontem num portal de internet: "Luís Caldas afirma que nunca participou do apartheid baiano". A manchete sugestiva era de uma notícia em que o cantor, que agitava o Carnaval de 2012, se defendia da acusação de racismo, feita contra ele em dezembro de 2011. Na ocasião, o cantor teve um corte de 30% em cachê  de um show realizado no 1º Festival de Blues e Jazz da prefeitura de Camaçari (BA), por ter cantado sua famosa canção "Nega do Cabelo Duro". Sei que a primeira pergunta que não quer calar é o que Luís Caldas estava fazendo em um festival de blues e jazz (ritmos que, aparentemente, passam longe de seu repertório); a segunda é se seria legal/justo/pertinente punir o cantor por executar sua obra mais famosa, e a pedido do próprio público (conforme afirmou sua assessoria).
Tenho refletido muito, atualmente, sobre o famigerado "politicamente correto". Os poucos, mas seletos (rs...) leitores deste blog sabem, por tantos posts, o quanto sou atenta à linguagem e aos preconceitos que veladamente ela transmite, mas confesso que a onda politicamente correta tem se tornado uma tsunami e, ao contrário de proporcionar reflexão sobre como os preconceitos surgem e são mantidos pela linguagem, está simplesmente cerceando textos e subestimando a capacidade analítica das pessoas.
Não vou dizer que a letra da canção de Luís Caldas contenha elogios à população afrodescendente. Ela realmente reforça alguns estereótipos negativos em relação à figura dos negros. Mas será que cortar o cachê de um artista popular não é ir longe demais na cruzada pela igualdade racial? Proibir a música de ser cantada seria a solução para extirpar da sociedade o racismo internalizado por séculos? Ou será que construir canções, poemas, quadros, filmes que apresentem negros de forma positiva, em diversos contextos e papeis sociais não seria mais efetivo? Ou será que dar oportunidades para que os negros ganhem salários iguais aos dos brancos e tenham as mesmas oportunidades de educar-se, qualificar-se profissionalmente e ascender economica e socialmente não seria mais eficaz?
Outro fato que me despertou mais uma vez a reflexão sobre o "politicamente correto" foi a notícia de que o Ministério Público Federal protocolou, em Minas Gerais, uma ação contra a editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss, na qual, além de uma multa de R$ 200 mil, requer como punição a retirada do mercado do famoso dicionário Houaiss. A acusação é semelhante à feita contra o cantor baiano: racismo. O busilis da questão está no verbete cigano, que traz, entre suas definições: "aquele que trapaceia, velhaco, burlador; aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro, agiota, sovina".
A ação teve início no ano de 2009, quando um brasileiro da comunidade cigana fez uma representação em que queixava-se do preconceito difundido contra os ciganos pelos dicionários. Após uma investigação, o Ministério Público expediu ofícios a várias editoras solicitando que o verbete fosse modificado, no que foi atendido por várias delas, como Globo e Melhoramentos. Segundo o autor da ação, o procurador Cléber Neves, a Editora Objetiva teria ignorado o ofício e a solicitação do Ministério Público.
Parece legítima a queixa dos cidadãos ciganos, afinal, ninguém gostaria de ler coisas tão pejorativas a respeito da etnia ou grupo social ao qual pertence. Entretanto, vale ressaltar que, no dicionário Houaiss, os trechos marcados como preconceituosos são introduzidos pela rubrica "Pejorativo", o que indica que o dicionário reforça para aquele que o consulta que os sentidos ali descritos são depreciativos, e não que se trata de uma "definição" que deve ser tomada como verdade.
Há pouco tempo tivemos uma polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato, que foi também considerada racista e proibida, pelo MEC, nas salas de aula, ou autorizada apenas com "notas de rodapé" que explicitassem aos leitores que a caracterização de personagens como Tia Nastácia depreciava a imagem do negro. Para além do fato de que chamar Lobato de preconceituoso é um anacronismo (pois no contexto em que cresceu e viveu Lobato o racismo era um conceito, legitimado, inclusive, cientificamente, e não um pré-conceito), eu me pergunto se não estamos subestimando demais a capacidade analítica das pessoas. Professores e alunos não podem ler qualquer obra e perceber por si mesmos preconceitos presentes nelas? Não podem refletir sobre eles? Debatê-los? Isso não enriqueceria o pensamento crítico dos nossos estudantes?
Da mesma forma, o dicionário Houaiss, que já vem com sua "nota de rodapé", isto é, com sua rubrica de "pejorativo", não estaria apenas explicitando um sentido generalizado sobre os ciganos e que precisa ser discutido, analisado, reformulado? O dicionário, em si, não cria os sentidos que compila. Se o termo cigano assim está dicionarizado, é porque a imagem negativa do cigano (assim como a do negro, da mulher, do judeu, do homossexual e de outras "minorias sociais") está difundida na sociedade. Então: atenção, Ministério Público! É melhor mandar revisar o dicionário inteiro! E censurar praticamente toda a literatura universal! Em nome do bom-mocismo (essa doença perniciosa que se alastra pelo território e mentes nacionais), vamos encher os clássicos com notas de rodapé.