segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

"O problema são estas biscatinhas..."

A palavra é a única coisa que me resta. Quando o mundo me cutuca, eu tenho que escrever. Mas quando ele esbofeteia, até as palavras fogem. Demora um tempo para digerir realidades tão cruéis e procurar as palavras para falar sobre elas. Mas precisamos falar. O silêncio é a pior coisa. O silêncio é companheiro da morte.
Há alguns anos tenho convivido com G., uma garota de 13 anos. Essa menina sempre me impressionou. Os olhos são de um negro denso e triste. Quando criança me chocava por proferir frases de um ceticismo impróprio para crianças de 8 anos. Foi rejeitada pelas pessoas que a trouxeram ao mundo e que teoricamente a amariam incondicionalmente e a protegeriam de tudo. Mas ao invés disso, foram eles mesmos que fizeram com que G. conhecesse a dor e a violência muito cedo.
Aos 10 anos, precocemente amadurecida, G. já era biologicamente mulher. Já menstruara, já tinha seios, era muito bonita. E aos 11 anos, ela começou a fugir da escola, a passar noites fora de casa. Também foi vista fumando e em companhia de homens. No fundo, penso que G. queria desesperadamente que alguém a percebesse. Quem sabe fazendo tolices? Quem sabe ameaçando ir embora para sempre? Mas só conseguiu mais algumas surras e o veredito, que ouvi dos lábios de pessoas de sua família: "G. se perdeu". Um fato consumado. Eu não me conformava de alguém selar assim o destino de uma criança, de alguém por quem havia tanto ainda para ser feito.
Aos 12 anos, G. engravidou. Agora, aos 13, deu à luz uma menina. Teve muitas complicações no parto por conta de seu corpo não estar ainda preparado para uma gravidez. Passou 10 dias na UTI. Por pouco não morreu. E agora tem uma vida em suas mãos: a pequena H. - o que será delas? eu me pergunto na minha angústia solitária. Quando as visitei no hospital, os olhos de G estavam ainda mais negros, mais densos, um olhar resignado, de quem não espera muito mais da vida.
Eu estava, na semana passada, comentando a história de G. com algumas pessoas. E caímos fatalmente nas estatísticas de meninas grávidas precocemente. E o comentário de umas das pessoas me incomodou muito: "O problema são estas biscatinhas de 10/11 anos que já querem dar nessa idade".
Imediatamente, eu argumentei que a maioria das crianças que manifestam desejo de consumar uma relação sexual adulta, em idade tão precoce, foram crianças erotizadas - ou por serem expostas a cenas de sexo ou vítimas de abuso sexual na infância. Estudos de psicologia afirmam que uma das consequências do abuso ou violência sexual é a hipersexualização das crianças agredidas. Também argumentei que essas meninas, muitas vezes desejadas por adultos, se deixam persuadir pela carência em que vivem: privadas de atenção, autoestima, afeto e carinho, procuram preencher essa lacuna na relação que lhes está sendo oferecida e que, longe de trazer isso, só lhes tirará proveito de seu jovem corpo.  
Mas minha interlocutora não se convenceu. Disse que a realidade não é bem essa. Longe de lhe dirigir uma crítica pessoal, o que faço neste texto é compreender suas opiniões, que creio ser uma visão meio generalizada sobre meninas precoces e seu incorrigível erro de engravidarem antes da hora (como se elas fizessem os filhos sozinhas, como se eles brotassem em seu ventre!).
Vivemos em uma sociedade em que o sexo é estampado na mídia de todas as formas. Longe de um discurso puritano que deseja censurar os meios de comunicação, não penso que o sexo deveria desaparecer como tema, mas penso sobretudo em com ele aparece atualmente. Além de ser banalizada, a sexualidade, sobretudo feminina, é colocada como moeda de troca. Condição de sobrevivência. E estamos falando de algo muito mais velado e perverso do que a prostituição (vista de forma folclórica e tão idealizada em novelas ou minisséries baseadas nas obras de Jorge Amado). Estamos falando de inúmeras novelas, filmes, propagandas em que se coloca o estereótipo da mulher bonita e gostosa, da mulher que consegue o que quer porque é sexy. Em outras palavras, o seu corpo continua sendo comprado, mesmo que ela seja rica, bem educada, que se case - invariavelmente, com um homem rico, bem sucedido, ou ao menos com grandes chances de se tornar assim.
Além disso, no pacote de "como se ensina a ser menina", entra o critério "atrair o macho". Desde crianças, meninas são ensinadas, explícita ou implicitamente, a se vestir, se pentear, se maquiar, se comportar de forma a atrair a atenção do sexo oposto e agradá-lo. Uma análise de alguns brinquedos infantis direcionados às meninas confirmam isso. Cada vez mais cedo, as meninas se parecem mini-mulheres. E nos últimos anos, cada vez mais as roupas para essas crianças (às vezes bem pequenas) se parecem com miniaturas de roupas para mulheres. Não aquelas roupas da minha infância, em que meninos e meninas se pareciam quando vestiam bermudinhas e camisetas, que precisavam acima de tudo ser duráveis e confortáveis, pois eram feitos para crianças que subiam em árvores, jogavam queimada, se ralavam descendo "de bunda" o gramadão da quadra da escola. A gente até colocava vestidos (em dias de festa, principalmente), mas eram vestidos mais parecidos com os das nossas bonecas do que com o da gostosa da novela das nove.
Então eu me pergunto: será que essas "biscatinhas de 10/11 anos" se sexualizaram precocemente sozinhas? Não são elas um produto dessa sociedade que, na falácia da quebra de todos os tabus, não sabe lidar com a sexualidade?
E talvez a pergunta que mais me doa: ao taxá-las de "biscatinhas", não estamos novamente culpabilizando a vítima? Não seria uma variação da perversa ideia de que a mulher abusada é quem provocou o abuso? Não estamos reforçando o que nos foi ensinado desde o mito de Eva: de que a mulher - com seus desejos, sua impureza - é a culpada?
E a derradeira das perguntas: não seria hora de mudar essa mentalidade e, assim, termos um alento de esperança de mudar histórias como a de G.?