segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Mudez de adeus

Vez em quando morte visita minha morada.
Chega sem sapatos lentos passos sem foice nem negras vestes
chega mansa como mãe que leva filhos ao sono
sem diagnósticos sem tiros nem catástrofes
entra serena com sua mudez de adeus para sempre.

Nem sempre há velas flores cruzes tumbas ou cinzas
nem sempre há corpos.
Às vezes velamos sonhos
ficções de vida a dois
pessoas queridas ainda vivas
mas que partiram de nós
velamos o que fomos

e jamais seremos novamente.

John Everett Millais, Morte de Ofélia, 1851.

sábado, 7 de setembro de 2013

De como nasci

Havia sol no dia em que nasci. Lembro-me bem: o lápis pequenino de tão usado e repetidamente apontado; em uma das extremidades, as marcas dos dentes na espera ansiosa das palavras. Havia vento também: um vento de tarde de outono, morno mas com o frescor de maio. A varanda vazia e o papel apoiado no piso, à espera do parto. Então, nasci: veio o primeiro verso, não sem alguma dor, que sem ela nunca se faz poema, não sem alguma alegria, não sem algum tremor de expectativa - tudo isso misturado naquele inebriamento que envolve os nascimentos de homens, de bichos, de canções, enfim, de tudo que pulsa.
Escrevi um poema de 12 versos - no despropósito, um para cada ano que até então eu tinha vivido. Mais 2 e eu teria estreado com um soneto, o que talvez marcasse uma trajetória regrada e clássica, mas algo me desviou desde o início para a desmedida. Para as palavras e emoções sem peias, sem mapas nem roteiros. Depois copiei o poema, com cuidado e caneta preta, em um caderno de capa amarela.
Fiquei contemplando as três quadras sobre o fim da página, carente de uma assinatura. Ali eu devia pôr meu nome, não como proprietária, mas como pertencimento. Mas eu não queria assinar o meu nome, aquele que eu usava desde sempre.
É que eu sabia-me nascendo. Intuitivamente, eu sabia que uma outra existência começara depois daqueles 12 anos e 12 versos. Eu tinha o corpo franzino, o coração confuso e uma mente que tentava colocar alguma ordem entre eles e o mundo lá fora, então eu não podia pensar isso conscientemente; mas eu sentia que, assim como os jovens índios que se tornavam guerreiros, eu precisava de um novo nome. Um nome que marcasse minha nova condição.
Então fiz minha certidão de nascimento: assinei nesta página um novo nome, um nome que eu me dei, e não o nome que tinham me dado. Eu não tinha a pele pintada, mas sabia que isso me paramentava para as batalhas que eu começaria a partir de então. Ninguém sabia, mas o pseudônimo não era meu nome falso - era, de fato, o mais verdadeiro.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A filosofia do chá de gengibre

Desde quarta-feira estou confinada em casa. Não, não estou em prisão domiciliar. Também não foi o meu marido que resolveu se tornar um ciumento compulsivo e psicótico e me trancou em casa. Estou me permitindo estar doente, só isso.
Se a frase causa estranheza à maioria das pessoas, explico-me: é que eu estou doente faz um tempinho. Mas eu não estava me permitindo ficar doente, porque afinal de contas, eu tenho que trabalhar, eu tenho meus alunos me esperando, eu tenho um livro para divulgar, eu tenho que escrever um texto encomendado por uma editora, eu tenho que estudar francês, eu tenho que faxinar a casa, eu tenho... Como esse "eu tenho que" assombra a nossa vida, especialmente a das mulheres!Como ele aprisiona, como ele faz com que a gente se violente, se obrigue a fazer coisas mesmo sem saúde para elas.
E não me permitindo ficar doente, tomando um comprimido aqui e outro lá, continuei naquele ritmo intenso, até que meu corpinho mostrou quem é que manda. Ele me mandou calar a boca, me fez ficar no cantinho da disciplina, para pensar... Principalmente em como eu o tenho tratado mal. 
Pois é, então desta vez, meio na marra, eu me permiti ficar doente e até fui ao médico. Vejam só que progresso! E estou aqui em casa há dias com meus lenços de papel, meus antibióticos e chás de gengibre com limão. Acho que esse post inteiro deve ser efeito de tanto chá... Há muita filosofia no chá de gengibre.
Penso seriamente que a doença às vezes chega para nos mostrar que estamos nos cuidando mal, para nos alertar que tem algo errado na nossa maneira de viver a vida. E como a gente se faz de surdo nessa hora! A gente insiste em não entender o que o corpo fala. Insiste em não lembrar que quando ele vai mal, tudo vai mal.
Levanto minha xícara como se eu fosse fazer um brinde. É, estou celebrando este momento em que eu me permiti ficar doente. Bebo mais um golinho do meu chá de gengibre, que está bem quente, picante e vai aliviar a dor que eu estou sentindo na garganta. E quiçá me inspirar outro post, depois que eu me livrar do sono que o antitérmico começa me dar.  E que me vence completamente. Às vezes, é bom se deixar vencer...
 

sábado, 3 de agosto de 2013

Habitar a cidade

Julho passou como um sopro, ora frio, ora morno, em seus dias curtos. Houve muita vontade de escrever, mas fiquei distante de computadores, empenhada que estava em apenas contemplar paisagens, as conhecidas e as novas.
De férias da sala de aula, resolvi conhecer Campinas. Sim, eu moro em Campinas, há anos, quase décadas. Então parece estranho dizer que resolvi conhecê-la agora. Mas é que não a conheço tanto assim, confesso. Havia muitos lugares ainda por serem conhecidos. E muitos cujo conhecimento ainda foi adiado.
A verdade é que muitos de nós não habitamos as cidades onde vivemos. Habitamos nossas casas, nossos apartamentos, nossos locais de trabalho e estudo, nossos shopping-centers e supermercados, mas não habitamos nossas ruas, praças, prédios públicos. Não caminhamos devagar observando, sentindo o ritmo da cidade, como ela respira. Eu me peguei pensando isso em uma das caminhadas que fazia entre o bairro do Bonfim, onde moro, e o centro de Campinas.
Passei pelo Botafogo, por ruas de casas antigas, com jardins de rosas à frente e senhoras varrendo as calçadas. Passei por praças escondidas no bairro do Guanabara, com crianças brincando e pequenos restaurantes agradáveis onde se podia comer uma comida caprichada por um preço justo. Cheguei ao centro e o ritmo da respiração era outro: muitas pessoas andando, comprando, falando. Na praça em frente à catedral metropolitana, sindicalistas faziam discursos. Alheios, os anjos da fachada em sua imobilidade que se sobrepõe a todas as preocupações mundanas. Descendo um pouco, o Mercado Campineiro, com suas bancas de frutas e um bar delicioso, onde se podia provar chopps de lugares distantes e encontrar os amigos. A conversa sempre boa com a amiga e historiadora Juliana Meirelles foi tão longa que acabou no Café Regina, lugar querido a todos que habitam o centro da cidade. Estar lá é uma experiência que começa pelo olfato: sentir o cheiro delicioso do café torrado ali mesmo. E depois bebê-lo, é claro, bem devagar. A pressa é sempre inimiga da diversão. Depois saímos a caminhar pela praça do Carmo, um céu de azul muito macio envolvia a tarde de sábado. E como se as pessoas todas se soubessem envolvidas por ele, um clima de tranquilidade pairava sobre as mesas, nas calçadas, com pessoas de todas as idades e estilos.
Diante de tantas notícias que nos bombardeiam todos os dias sobre os males da cidade e da a violência urbana, deixamo-nos invadir por  uma insegurança constante, quando não por uma sensação de pânico.  E uma das consequências disso é que deixamos de habitar a cidade. Deixamos de ocupar seus espaços, que são nossos, e com isso, ela se torna cada vez mais degradada e à mercê daqueles que as usam como palco da criminalidade e do vandalismo. Eu adoro andar pela cidade. Ver as pessoas nas ruas, nos lugares públicos, porque isso é que dá alma à cidade. Só o ser humano pode dar sentido a paredes de concreto, a estruturas de aço e vidro.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

As suspeitas intenções (e consequências) do imediatismo

Sente-se um clima de vitória em vários discursos. Depois do povo ter ido às ruas, ter gritado contra o aumento das tarifas dos transportes, dezenas de cidades anunciaram uma pequena redução no valor das passagens de ônibus. Nesta semana, a famigerada PEC-37 foi finalmente vetada por nossos parlamentares, aprovou-se a destinação dos royalties do petróleo para a área da educação e da saúde, anunciou-se a realização próxima de um plebiscito para a tão almejada reforma política e estamos perto de tornar a corrupção um crime hediondo.
Diante de tudo isso, tomadas de otimismo, algumas pessoas declaram que o Brasil mudou, que agora o povo não aceita mais a corrupção e a manipulação, que agora o futebol não é mais o ópio do povo, como sugere a charge abaixo.

Charge publicada na Suíça sobre as manifestações no Brasil. O texto do balão diz: "Isso não funciona mais".


O Brasil tem se transformado, sim. Mas isso não aconteceu em duas semanas, por conta do povo ter "tomado as ruas". Isso vem de um longo processo de educação política, no qual somos ainda tão iniciantes, em uma República de pouco mais de 100 anos que, ainda por cima, passou praticamente 50 deles em regimes ditatoriais.
Digo isso porque a aprovação de tantas demandas públicas nesse curto espaço de tempo me sugere apenas o imediatismo de quem teme o resultado das urnas nos próximos anos (já que agora o brasileiro, de repente, pode passar a ter memória política e levar isso em conta na hora de votar). Figuras públicas e partidos políticos se adiantam em declarar que "finalmente faremos a reforma política", como se eles estivessem lutando por isso há anos. Seria cômico, se não fosse trágico, ver Renan Calheiros e Aécio Neves parabenizando o povo brasileiro por conquistas que eles sempre se esforçaram por impedir ou adiar.
Nada cômico, e também muito trágico, é ver pessoas atacando Lula e sua administração por não ter realizado tais reformas, acusando-o de não ter feito absolutamente nada pelo país. Lula não é santo nem herói, mas é muita falta de conhecimento (ou cegueira ideológica) ignorar as conquistas sociais alcançadas nos últimos 10 anos. Além disso, os presidentes anteriores (não nos esqueçamos que houve 3 mandatos presidenciais antes de Lula chegar à presidência) também não fizeram esforços no sentido de aumentar recursos destinados à educação, muito menos acenaram com a possibilidade de uma reforma política. Ao contrário disso, FHC articulou sua continuidade no poder, comprando votos de parlamentares com dinheiro público para aprovar a lei da reeleição, mas ninguém deu um nome interessante (do tipo "Mensalão") para isso, nem investigou, nem puniu. Então, não sejamos ingênuos. A César o que é de César: um partido que está há 10 anos no governo federal não pode ser exclusivamente culpabilizado por séculos de corrupção e pela manutenção dos privilégios políticos. Nem acusado de não ter feito milagres - já que apenas poderes sobrenaturais seriam capazes de mudar em 10 anos a maioria de sociedade que fez e faz política de maneira escusa ao longo destes séculos, ou seus governantes que, sim, infelizmente, a representa.
E em se tratando deste assunto, talvez o grande câncer da nação, a transformação da corrupção em um crime hediondo, em si, não vai extirpá-la. A maioria da população brasileira, com seu precário conhecimento da nossa legislação, tem o hábito de dizer que, no Brasil, existe criminalidade porque as leis são brandas. O problema não são as leis, em si, mas aqueles que todos os dias buscam maneiras de burlá-las. Aqueles que acham que as regras existem para os outros, e não para eles, que só possuem direitos, e não deveres. E quando digo isso, não me refiro aos deputados, aos peixes grandes, mas a qualquer cidadão.
Não vai adiantar transformar a corrupção em crime hediondo, ou aumentar os recursos destinados à educação, se não houver uma transformação da mentalidade brasileira, ou para ser mais específica, na dimensão que temos da esfera privada e da esfera pública, dos direitos pessoais e dos direitos coletivos. Os primeiros ainda prevalecem sobre os segundos, tanto em nossos pensamentos quanto em nossas ações. E isso faz com que os problemas referentes aos serviços públicos, no Brasil, não sejam apenas de repasse de verbas, mas sobretudo um problema de gestão destas verbas. Aí chegamos naquele ponto que não depende só do presidente, do deputado, do governador, do prefeito, mas das milhares de pessoas que estão transformando as leis e o dinheiro público em serviços. E nesse quesito, estamos mal, muito mal. Vemos pessoas sem gana, que fizeram um concurso público não em busca de um trabalho, mas de um salário. Acho legítimo que as pessoas sejam bem remuneradas por seu trabalho, mas acho triste que alguém almeje um cargo no serviço público não porque ele se relacione com sua área de formação ou de atuação, mas porque ele "paga tantos mil reais". Mais lamentável ainda é alguém que, estando nesse grupo, nem se esforça por fazer com competência e compromisso o seu trabalho, mas faz menos que o mínimo, porque sabe que suas chances de ser demitido são mínimas, quando não são inexistentes.
Esse comportamente dificilmente é taxado como corrupto pela maioria das pessoas com que convivo. Ao contrário, é visto como algo normal, o que me desperta revolta ou desânimo. Uma vez, um servidor da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo me relatou que os diretores das escolas públicas dispõem de uma verba anual para pequenas reformas nas escolas, mas que, visitando uma determinada escola que era famosa por suas péssimas estalações, ele se surpreendeu com a sala da diretora. Em uma escola que tinha goteiras nas salas de aula e na biblioteca, carteiras velhas e desconfortáveis, paredes descascando e problemas no encanamento, a sala da diretora era digna de sair em uma revista de decoração. É um exemplo que diz muito sobre as considerações que fiz anteriormente sobre os direitos pessoais e coletivos.
Longe de mim dizer que a verba destinada à educação é suficiente, óbvio que é preciso fazer maiores investimentos em educação (aumentando o salário do professorado, sobretudo, pois não adianta investir em lousa eletrônica se não há bons profissionais nas escolas). Mas, se não houver uma profunda mudança que faça com que as pessoas enxerguem verbas governamentais como dinheiro público, ou seja, de todos; enquanto as pessoas que lidam com esse dinheiro não se sentirem responsáveis por todos os donos desse dinheiro (em suma, toda uma cidade, estado ou nação), as coisas tendem a continuar iguais.
É por isso que eu penso que, embora as demandas sejam urgentes, as soluções não são imediatas, pois envolvem toda a formação cultural e política de um povo. Incomoda-me o aparente apaziguamento que as resoluções mencionadas no início deste texto podem trazer, ao nos dar a sensação de que vencemos. De jeito nenhum: apenas começamos. A maior criminalização da corrupção, a conquista de mais verbas para educação e saúde são resultados positivos, mas para consolidadar mudanças é preciso que cada cidadão, em sua pequena esfera de atuação, se envolva ativamente. Isso sim é fazer política, com ou sem partido. Vai além das siglas e da culpabilização maniqueísta de algumas figuras públicas.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Uma tristeza ainda mais difícil

Há menos de uma semana fiz um post sobre as manifestações em São Paulo. É incrível como, em menos de uma semana, tantas coisas mudaram. Na sexta-feira passada, um pesar por ver a truculência com que a PM, apoiada pela mídia oficial, tratava os manifestantes, ativistas e jornalistas. Mas, ao mesmo tempo, uma alegria: a de ver que, depois de décadas, o povo brasileiro tomava as ruas para manifestar sua indignação e exigir melhores condições de transporte público, uma pauta tão importante e que influencia tanto na vida das cidades, na cadeia produtiva, no meio ambiente.
Mas agora, uma tristeza ainda mais difícil toma conta de mim, ou melhor, de nós que acompanhamos com atenção e desconfiança tudo o que tem acontecido. Diante das imagens e relatos transmitidos pela internet, a grande mídia não podia mais negar que era a PM quem estava tocando o terror nas manifestações. E uma grande mudança se operou no discursos. De vândalos e vagabundos, passaram a manifestantes. Grandes emissoras de TV, jornais e  revistas informativas de grande circulação repentinamente passaram a elogiar o movimento, incitando um nacionalismo ufanista que nada fica a dever para finais de copa do mundo. Transmitiram e ainda estão transmitindo à exaustão imagens do povo nas ruas como algo lindo e comovente, reforçando o caráter apartidário das manifestações e sempre reforçando que "alguns grupos isolados" cometiam atos de vandalismo a monumentos e instituições públicos e propriedades privadas.
Obviamente, tais veículos de comunicação dependem da adesão do público. Eles não iam querem ficar mal na foto e passarem por mentirosos e "manipuladores da verdade". Mostraram a truculência da PM e a reconheceram quando não era mais possível negá-la, a fim de se dizerem idôneos. Mas acho que a coisa vai além da mera audiência. O ser mineiro e desconfiado que vive em mim me diz que há algo de muito errado acontecendo.
A mudança súbita do discurso da grande mídia me soa a algo planejado e coeso, ao contrário do que se tornaram as manifestações. Afinal, qual a melhor maneira de desarticular um movimento social que poderia representar algum perigo ao status quo? Infiltrar-se nele, apropriar-se de seu discurso, confundi-lo. É isso que vejo: o Jornal Nacional destes últimos dias foi quase um convite para que os espectadores saíssem às ruas para participar desse "momento histórico". Sem bandeiras de partido, é claro, estamos fartos da política. E esse discurso é a grande sacada desses veículos, comprometida com os poderes vigentes, para desarticular qualquer movimento que possa efetivamente ameaçá-los.
Alimentar a recusa da classe média brasileira contemporânea pela política, com seus argumentos de que não quer se sujar com ela, é muito útil para que novas lideranças não surjam. Se essa classe média realmente acredita que vai se manter "limpa", sinto informar: estamos atolados nessa "sujeira" até o pescoço e nos atolamos ainda mais toda vez que nos omitimos diante dela. A omissão parece uma saída fácil: ao não carregar bandeiras de partidos, parece que o cidadão se exime de responsabilidades sobre os atos de qualquer um deles. Não sejamos ingênuos: a omissão é uma escolha política, é o apoio tácito ao poder já instituído.
Mas louvando as manifestações "sem partido e sem violência", carregando reportagens de um discurso emotivo e triunfante, a grande mídia conseguiu atrair para as manifestações um público afeito a seus propósitos: que se diz "sem ideologias", com pouco conhecimento das pautas que reivindica, e sem sequer noção de para quem deve reivindicá-las. O grito inócuo contra a corrupção aponta para Brasília, saindo da boca daqueles que não conseguem distinguir a esfera de atuação dos poderes federais, estaduais ou municipais e que, portanto, culpabiliza a presidenta de todo e qualquer problema. Que não conseguem perceber que o problema da corrupção está na sua naturalização nas mais diferentes classes sociais e esferas da sociedade.
Sem contar que as manifestações apartidárias proporciona que qualquer partido se aproprie delas em momentos posteriores. Já estamos vendo isso em propagandas na televisão. Oportunamente, o mesmo partido que governa o estado de São Paulo há praticamente duas décadas vai, provavelmente, fazer uso destas manifestações que tentou coibir com mão de ferro, ressuscitando práticas do tempo da ditadura militar, que nunca foram esquecidas nas terras paulistas.
Estou seriamente preocupada com a apropriação destas passeatas, inicialmente tão legítimas, pelos discursos de direita, autoritários e facistas. Esse excesso de bandeiras do Brasil e hinos nacionais cantados em uníssono me arrepiam, mas no mau sentido. É um nacionalismo que embota a reflexão dos problemas e de seus atores sociais. É a mesma estratégia patriótica que precedeu ditaduras em nosso país. Já vimos esse filme, em que muitos morreram no final. Mas por incrível que pareça, há aqueles que expressam saudades desses tempos de "ordem e progresso".
Enfim, não nos deixemos enganar de que vencemos porque prefeituras estão baixando as passagens de ônibus. Não existe mudança se, para isso, empresas estão recebendo isenção de impostos ou verbas de outros serviços estão sendo diminuídas. Quem continua pagando a conta é o povo e quem continua lucrando muito são as empresas de transporte público e pessoas que as favorecem nas licitações públicas. Vi posts no facebook que falavam em "revolução de 2013". E eu me pergunto: que revolução, cara pálida? Que revolução, se nada tem mudado, estruturalmente falando? Isso também me fez lembrar de outros períodos da nossa história que se disfarçaram com o rótulo revolução.

sábado, 15 de junho de 2013

Uma alegria difícil

Dias atrás reencontrei Clarice. Sim, a Lispector. Chamo-a assim, pelo primeiro nome, apesar do protesto de alguns colegas de universidade. E nesse reencontro, proporcionado por uma aluna, que está fazendo seu TCC sobre a renomada autora, me deparei com uma ideia maravilhosa: a da "alegria difícil". É o que declara sobre o que lhe trouxe a personagem G.H: "uma alegria difícil, mas chama-se alegria".
Só essa frase foi capaz de descrever os sentimentos contraditórios que tenho sentido quando vejo os jornais e leio notícias pela internet sobre os protestos em São Paulo. O que eu sinto quando vejo uma imagem como essa:



Enganam-se aqueles que pensam que essas pessoas estão protestando por conta de alguns centavos. Como diz o vulgo, o buraco é mais embaixo. Creio que o povo grita o que tem calado há tanto tempo - e aí está minha alegria. O grito. O grito que desperta. O grito que escancara as injustiças, que portanto não podem mais ser negadas. E por isso, o grito que assusta, amedontra, desconcerta àqueles que querem manter o estado de coisas, seus poderes e privilégios.
Entretanto, ainda há aqueles que insistem em negar: ontem assisti ao depoimento do governador Geraldo Alckmin aos jornalistas. Sobre a ação da PM: "A polícia acompanha as manifestações para proteger o cidadão". Sobre os protestos, afirmou que as manifestações teriam intuito político, não cívico - como se "apenas" protestar pelo aumento de um serviço público de péssima qualidade não fosse político.
Não me surpreenderam as afirmações do nosso digníssimo governador sobre a ação truculenta da PM. Afinal, a PM é subordinada ao poder do estado. O que me surpreende é ver pessoas acreditarem na versão de que os policiais só defenderam a população dos vândalos, dos vagabundos que, ao invés de trabalhar para fazer o país crescer, estão por aí quebrando a cidade. Valei-me, minha Nossa Senhora do Senso Crítico! Só apelando para o divino com essa gente, já que, nestes dias, sites, blogs e redes sociais têm difundido textos e imagens não só de manifestantes, mas de jornalistas que foram agredidos gratuitamente pela PM, que bateu e atirou primeiro. Só não enxerga quem não quer ver. E para quem não viu e quiser ver um pouco, recomendo a página:

http://www.melhorquebacon.com/24-momentos-protesto-sao-paulo/

Mas dizer que as manifestações têm intuito político é o óbvio ululante. Porque como disse Brecht, em seu famoso poema "O analfabeto político", o preço do feijão, e acrescento, da passagem de ônibus, tem tudo a ver com a política. Mas é claro que Alckmin não quiz ressaltar o quanto a população paulistana se tornou atuante; certamente se referiu a isso no mau sentido, como se fosse uma conspiração partidária para abalar o aparente inabalável governo de décadas de seu partido em nosso estado. O que as notícias, vídeos e depoimentos de manifestantes e jornalistas na web têm me mostrado é que podemos supor o oposto. A iniciativa de responder jogando a tropa de choque na população não é nada nova por aqui - haja vista quantas vezes o governo do estado fez isso com o professorado em greves e prostesto desde a época do finado Mário Covas, isso para só falar dos tempos de """""democracia""""". Mas agora a reação truculenta e extremamente autoritária me parece trazer algo de novo: não apenas o intuito de intimidar, de amedontrar, mas de depreciar, de levar ao descrédito. Afinal, manifestações que seguem em ordem e sem violência (como estavam acontecendo antes da chegada da tropa de choque) são perigosas. Podem levar as pessoas não apenas a pensar, mas a acreditar no poder de seus pensamentos e suas vozes unidas.
Acredito que a ação da PM não foi um descontrole de policiais isolados, como vão provavelmente alegar os comandantes da política e da polícia estadual. E sim uma estratégia para reforçar o que já está no imaginário brasileiro: que fazer protestos públicos é coisa de vândalos e de quem não tem o que fazer. E de que o brasileiro tem que continuar cordial e impotente diante das decisões políticas. Afinal, é útil ao poder instituído passar a ideia de que somos um bando de alienados e por isso não vale a pena fazer nada. E se convencidos de que somos vozes isoladas, a inação toma conta de nós.   
Estou triste ao ver e ouvir relatos de pessoas que foram seriamente agredidas e presas. Vi um post no Facebook da cantora Juliana Amaral, muito bonito, em que ela dizia que era impossível cantar diante de tanta violência. Eu também me calo às vezes, com a alma pesada. O silêncio da morte se apodera de mim, principalmente, quando vejo pessoas defendendo a ação da PM, a truculência e o autoritarismo. Mas ao mesmo tempo, eu me alegro ao ver as pessoas na rua. Ao ver jovens oferecendo flores à tropa de choque - como em outros momentos da história. Ao perceber que não somos marionetes.
É uma alegria difícil, mas chama-se alegria.

domingo, 19 de maio de 2013

Hóspede do tempo

Há tantos poemas, canções e filosofias sobre o tempo que escrever sobre nossa relação com ele parece redundante. Mas tenho refletido muito sobre o tempo. No quanto ele nos ultrapassa. No quanto eu me pego dizendo: "Queria ter mais tempo para escrever (ou qualquer outra atividade que me seja muito prazerosa)". E quantas vezes, neste tumultuado ano de 2013, eu ouvi pessoas falando sobre como o tempo está passando incrivelmente rápido - como se fosse ele, e não nós, que tivesse pressa...
A verdade é que brincamos com o tempo. Fazemos planos como se ele nos pertencesse. Adiamos coisas essenciais para a nossa felicidade, pensando que, em um "depois" - projeção de um futuro vago e indefinido - teremos tempo para dar atenção a nós mesmos e a quem amamos, para aprender algo que nos encanta, para dançar, cantar, descansar, em suma, procurar a alegria e a paz.
Adiamos sempre, crendo que nós temos o controle e resolveremos tudo. "Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá", como diz a maravilhosa canção de Chico Buarque.
Em menos de 7 dias vivi duas experiências opostas. Fui da extrema satisfação à extrema angústia. Em um domingo, eu estava cercada de pessoas queridas, numa linda manhã de maio, realizando algo há muito sonhado, conquistado com muito trabalho: a publicação do meu primeiro livro de ficção. No sábado seguinte, tudo voou pelos ares: um automóvel preto cortou a pista, capotou, caiu na ribanceira. Neste carro, as pessoas que mais amo na vida. Não só as rodas, mas de repente, o mundo de ponta-cabeça.
E então era como se o tempo tivesse parado. Tudo ficou em suspenso, na espera angustiosa do que aconteceria. Depois que a morte passou por nós e se foi sem levar ninguém, ficaram as dúvidas dos danos do acidente. Todos os planos perderam o sentido perto do que tem realmente importância: conseguir respirar, comer, andar...
É impressionante como precisamos que a vida nos chacoalhe violentamente para percebermos o que é essencial. Tenho aprendido muito nestes dias com minha mãe. Com sua imensa paciência diante da dor e da dependência de terceiros para fazer qualquer coisa. Com seu sorriso amável de agradecimento à vida por mais esta oportunidade de continuar no tempo. De se hospedar nesse mundo. Porque é isso que somos: hóspedes. Nada nos pertence: nossas casas, carros, celulares, nem sequer esse corpo que chamamos de nosso nos percente. E na nossa imensa arrogância, agimos como se tudo nos pertencesse, inclusive o tempo e a própria vida.
Eu agradeço ao tempo, um dos deuses mais lindos, como diz Caetano, por continuar sendo sua hóspede. E termino este post com a bela canção de Zélia Duncan. Porque o que vale é nossa atitude, a cada dia, que pode ou não ser o último.