segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Tenho sonhado com estradas

Tenho sonhado com estradas
só o vento limpa as remelas da inércia
sol de madrugada resiste em não nascer
parto longo tingindo o céu ainda não anil
pés descalços no traço 
ébrio de paralelepípedos
meus olhos cegos às placas
coração ritmando a caminhada
pulmões cheios de desejo
de nunca mais voltar
e nunca mais chegar.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sociedade dos poetas vivos


Neste último sábado, a sala Carlos Gomes da Livraria Saraiva, em Campinas, foi sacudida por calorosa discussão, na 3ª edição do Projeto 1001 Leituras. O poeta, ficcionista e dramaturgo premiado, Marco Catalão (autor de livros como Cânone Acidental, A face neutra e Agro Negócio) chegava com uma afirmação polêmica: a de que não existe, na literatura ou em qualquer outra arte, o talento inato. Afirmação às vezes incômoda para uma sociedade que, influenciada pelos ideais cristãos (sobretudos protestantes), e mais recentemente, pela ideologia estadunidense (propagada à exaustão pelo cinema hollywoodiano), espera pelos eleitos: aqueles que teriam sido agraciados com o dom. Ou, em uma linguagem menos mítica, os que nasceram mais inteligentes ou com mais aptidão que a maioria para determinadas atividades ou áreas do conhecimento ou da arte.
Catalão afirma categoricamente que não existem eleitos, e sim, pessoas que foram expostas a determinadas condições que favoreceram seu aprendizado, sua pesquisa, sua assimilação tão profunda de um conhecimento ou linguagem a ponto de se tornar um especialista, um campeão, um vencedor de prêmio Nobel. Obviamente, a afirmação gera questionamentos: se qualquer um pode ser um escritor, artista ou cientista por ter sido exposto a tais condições, por que então alguns se destacam? O poeta, também doutor em Letras pela Unicamp, atribui isto às diferenças individuais: não somos todos iguais e não reagiríamos da mesma forma aos mesmos estímulos. Não se trata de determinismo, não somos meros joguetes do meio. Mas sem ele, jamais desenvolveríamos qualquer talento, ele afirma com convicção.
Concordar ou não com estas afirmações não vem ao caso: o que nos interessa é onde Marco pretende chegar em sua tentativa de desconstruir um valor tão arraigado em nossa sociedade. Voltando seu discurso exclusivamente para a criação literária, ele aponta uma das consequências da crença no talento inato: o não investimento na formação do escritor. Afinal, se alguém nasce com o talento, não é preciso passar horas lendo e discutindo textos literários, nem dias e dias escrevendo e reescrevendo textos, nem conhecendo seus pares e o que eles escrevem e publicam. Para Catalão, seria esse o empecilho para que chegássemos a um nível internacional de excelência e reconhecimento na literatura, conforme aconteceu há pouco com a matemática, com a nomeação de Arthur Ávila para a Medalha Fields.
Os que não foram perderam uma acirrada discussão sobre a necessidade ou não de estudos (sejam de natureza teórica ou prática) de forma institucionalizada para a formação de um escritor, haja vista que tantos bons escritores brasileiros constituíram suas obras sem um estudo institucionalizado e muitas vezes conciliando a atividade criativa com outras atividades profissionais. O que importa, de fato, não são as conclusões às quais chegamos, mas a pergunta lançada, o incômodo da indagação.
Toda mudança começa com um incômodo - e é sobre ele que quero falar, na esperança de que algo mude. A fala de Catalão me provoca dúvidas, mas também algumas luzes. Como escritora e, sobretudo, como professora de literatura, estou sempre refletindo em como as pessoas concebem e consomem a literatura, e um fato nas últimas semanas me fez voltar a imagens e ideias já visitadas: a morte, há cerca de uma semana, do ator Robin Williams. Um dos papéis mais famosos deste ator é o de um professor de literatura, no filme Sociedade dos poetas mortos. Assisti a este filme, muito famoso nos final dos anos 80 e começo dos 90, aos 12 anos. Estava começando a escrever meus primeiros versos. O filme me encantou, como a muitos da minha geração, que colocaram algumas suas cenas no Facebook em homenagem póstuma ao ator.
Neste filme, o professor entusiasta procura levar seus alunos a perceberem que a literatura não é algo a ser estudado com gráficos, mas algo a ser sentido intensamente, quase visceralmente. Se durante a adolescência esse filme representou minhas próprias ideias sobre a literatura, eu que delirava com a então recente descoberta pessoal de Castro Alves, Manuel Bandeira e Emily Dickinson, depois de me tornar professora e escritora, comecei a vê-lo com outros olhos. A pensá-lo em suas entrelinhas, nas quais vejo algumas ideias questionáveis sobre a literatura e seu ensino. A pensar que precisa existir um meio termo entre o gráfico e as vísceras.
Sim, literatura é arte, e enquanto arte, constrói-se por caminhos marcados pela subjetividade. Em outro post deste blog, eu afirmo que escrevemos para iludir o tempo, para driblar a morte. Já escrevi por diversão, já escrevi por amor, já escrevi por exasperação, por raiva e por vingança. Quem me leu, lê e lerá, sentirá tudo isto? Não sei - o espaço interativo da leitura também é marcado por subjetividades. Mas uma coisa eu posso afirmar com certeza: não foram meus sentimentos que foram escritos sobre o papel. Como disse o poeta Drummond, em "Procura da Poesia":

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


O que escrevi foram palavras. E foi o longo aprendizado das palavras, a longa convivência com a palavra escrita e literária que fez com que eu me tornasse escritora. Talvez se, desde minha infância, eu tivesse feito aulas de balé, eu seria bailarina, eu materializaria algo destes sentimentos no movimento e não na palavra.
Mas, neste filme, este professor de literatura apresenta-a como mera emoção condensada. É memorável, para mim, uma cena em que o professor incita um dos alunos, que não tinha feito a tarefa de escrever um poema, a compô-lo instantaneamente, de olhos fechados. Segue-se uma espécie de transe em que o garoto declama uma torrente de palavras poéticas. O poema surge, brota magicamente, lindo, perfeito, surreal. Porque já estava ali, no ser que o profere, aparentemente, desde sempre.
Isso seria possível? Talvez. Já tive a felicidade de escrever um poema em um momento que poderia ser chamado de "inspiração". Um momento em que as palavras vieram e as escrevi como vieram e daí surgiu aquele que considero um dos meus melhores poemas, "Mnemoteca". Mas ele não surgiu magicamente na minha mente quando eu tinha 12 anos, mas praticamente aos 30, quando eu já havia acumulado quase duas décadas de leituras e de escrita de textos literários. O que parece um "transe" pode ser visto como um transbordamento de uma linguagem internalizada, com a qual convivi de tal forma que ela passou a fazer parte da minha identidade.
Lembrei-me num flash da cena fílmica que descrevi acima, quando Catalão, em sua palestra, falou das consequências da ideia do talento inato no ensino de literatura, no qual privilegiamos os autores canônicos e os reverenciamos como se eles tivessem produzido toda sua obra em um transe, e não em um processo repleto de questionamentos, hesitações, tentativas e erros. Assim, não damos espaço aos escritores contemporâneos, que estão em processo. E assim reforçamos a imagem da literatura como algo distante, restrito a poucos iluminados, portanto inacessível a nossos alunos. E, por conseguinte, desinteressante à maioria.
Voltei para casa com a sensação de que urge formarmos a sociedade dos poetas vivos.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Todo mundo tem a sua cachaça



Sabe aqueles quadros compartilhados à exaustão no Facebook, que colocam “Como meus amigos me veem”, “Como minha família me vê”, “Como eu me vejo” para várias profissões ou situações? Fiquei pensando em como seria um quadro destes que retratasse o escritor.
Há reações diversas quando declaramos para alguém sermos escritores, mas frequentemente ocorre uma certa perplexidade – para não dizer mesmo que alguns se sentem diante de um E.T.. Às vezes, percebe-se alguma deferência: as pessoas nos parabenizam, e não raro falam que gostam de ler, ou sobre a importância da leitura, mas se esquivam delicadamente quando  mostramos um exemplar do livro, com medo de que sejam obrigados a comprá-lo.
Outra reação comum é um olhar de piedade, de complacência, como se dissesse “Puxa, coitado de você que sonha em viver de literatura”. Foi esse o olhar de um professor de ensino médio, quando eu lhe disse, um dia, que eu escrevia poemas e queria ser escritora. Não contente com o olhar e para não deixar dúvidas, ele completou: “Você tem vocação para faquir?”.
Frequentemente, também escuto, ao dizer que sou escritora: “Que legal! Eu faço oficina de origami e dança de salão.” E então você delicadamente explica que não se trata de um hobby, de um passatempo. Nos últimos meses, fui chamada a dar palestras para jovens e professores e uma pergunta que apareceu bastante foi: “Além de escrever, você trabalha?” E as pessoas perguntam isso a sério, porque no imaginário geral da nação, escrever não é um trabalho, nem ser escritor é profissão.
E na contramão deste pensamento, estão aquelas pessoas que acham que você está ganhando muito dinheiro. Aquelas que acham o livro uma fortuna, mas não pensam que, para que ele chegue à estante da livraria, além do escritor, várias pessoas trabalharam: o editor, o ilustrador, o diagramador, o revisor, funcionários da gráfica, o divulgador, o distribuidor, o vendedor... Aquelas que reclamam que seu livro está muito caro, mas que gastam o dobro sem reclamar para comprar qualquer outra coisa. Isso quando elas não pedem um livro de graça, sem pensar que o autor, muitas vezes, está pagando para trabalhar, pois, além de escrever seu livro, custeou sua edição do próprio bolso. Ou, se não o fez, não está ganhando mais do que alguns centavos por exemplar vendido.
E para terminar com a “pureza das respostas das crianças”, uma vez eu estava fazendo contação de histórias em uma escola, e um menino me perguntou se eu estava ganhando bastante dinheiro com o meu livro. Eu disse: “Não, apenas escritores que são celebridades e vendem muitos livros conseguem realmente se sustentar com isso”. Ele me olhou estupefato e disse: “Uai, então por que você escreve livro?”.
Essa é uma pergunta que eu já me fiz muitas vezes. Diante da pouca valorização do escritor pela sociedade (e não me venham com aquele blábláblá de que você valoriza o escritor se você vai ao lançamento do livro, mas não compra porque vai tentar fazer o download de graça depois); diante da dificuldade de publicar em um mercado editorial que frequentemente vai pensar primeiro na vendagem do livro e depois na sua qualidade artística; diante da aventura de ter que conciliar a criação e a escrita com tantos outros afazeres que pagam as minhas contas, eu já me questionei em por que continuar escrevendo.

Mas não parei. E só Drummond conseguiu me dar uma resposta. É que meu verso (ou minha crônica, meu conto, meu romance) é minha cachaça. E todo mundo tem a sua cachaça.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Havemos de amanhecer?

Já escrevi neste blog que quando a realidade me cutuca, eu preciso escrever. Mas tem dias que a realidade me esmaga - o peso da fatalidade, o fato consumado que repete o que parece não mudar nunca... É assim que eu tenho me sentido todas as vezes que leio as notícias sobre os conflitos entre Israel e a Palestina, ou melhor dizendo, sobre o massacre cruel que Israel está comandando sobre uma população indefesa.
Há dias tenho pensado e tentado escrever sobre isso, mas foi em uma sala de aula que consegui partilhar minhas ideias e angústias sobre o assunto. Ser professora me dá muitas oportunidades - não apenas de falar de literatura, de partilhar meu conhecimento sobre algo que é tão vital para mim, mas sobretudo de ter o consolo de, através de versos e poemas lidos e compartilhados, encontrar ao menos um alívio para as minhas tantas indagações.
Na semana passada, eu estava no 3º ano do Colégio Dom Barreto e começamos a ler Drummond, mais especificamente os poemas de "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do Povo". E de repente, o espanto: não parecia que o poeta mineiro escrevia em meados da década de 40. Quando comecei a declamar "A noite dissolve os homens", quase pude imaginar o risco das palavras no papel naquele exato momento:

A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...

O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.


Pensei nas imagens vistas no dia anterior, de crianças palestinas mortas, de hospitais e escolas bombardeados. A noite cai, tremenda, sem esperança, neste exato momento. A noite, a escuridão da violência, do ódio, da intolerância dissolve os homens, dissolve sua humanidade e não se vê mais irmãos - são todos inimigos. Uma noite completa e sem reticências - apenas um ponto que finaliza tudo, que inutiliza até o sofrimento. Os suicidas têm razão.
Senti que muitos alunos se deixavam levar pelo peso das palavras, pela minha voz também pesada. E interrompi a leitura do poema e perguntei a eles: "Não parece que a humanidade anda em círculos"?
Alguns assentiram imediatamente com a cabeça, outros me dirigiram os olhos interrogativos. Então expus meu pensamento: quando Drummond escreveu estes versos, a noite caía especialmente sobre a comunidade judaica. Milhares de judeus indefesos foram mortos no maior genocídio da história. E agora, décadas depois, a nação criada para eles no pós Segunda Guerra Mundial, como forma de indenizar tantos sofrimentos, é que comanda o genocídio. Sim, genocídio, esta palavra assustadora, tenebrosa. Ontem, vítimas; hoje, algozes. Mas independente de nacionalidades ou orientações religiosas (não é este o ponto da reflexão), parece-me que a humanidade tem sempre girado nesta roda-viva, em que alternam-se vítimas e algozes, mas eles sempre existem, reproduzindo eternamente a violência extrema de que o ser humano é capaz.
Aí eu percebi o desalento no olhar de alguns, a perplexidade no de outros, em um silêncio raro nas salas de aula atuais. Aí senti que era o momento de terminar minha leitura:


Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para cobrir tuas pálidas faces, Aurora.


Eu me envolvi tanto na declamação destes versos que não me contive e, em um gesto espontâneo, abracei o livro que tinha nas mãos e disse: "Obrigada, Drummond". Alguns alunos sorriram, aquele riso complacente de aluno que acha a professora louca. Mas foi essa a minha reação mais sincera, agradecer ao poeta que me convidava a acreditar na  Aurora, ainda que seja tímida e inexperiente. Perguntei aos alunos o que eles pensavam sobre esta segunda estrofe, e muitos citaram palavras como "fim da guerra", "esperança", "reconciliação entre os povos". 
O mais bonito, para mim, é que Drummond não faz uma oposição entre a noite e o dia. Ele sabia que o dia e sua claridade, sua alegria, sua certeza ainda estavam distantes. Mas ele fala da aurora, essa promessa da manhã de paz que se estende sobre o mundo. Uma aurora que transforma o sangue da violência no tom rubro do céu que anuncia a chegada do sol. Uma aurora em que a fadiga cessa, em que o perdão e sua maciez se concretizam nas mãos que se enlaçam. 
Obrigada, Drummond! É tudo que sei dizer. Minha carne também estremece na certeza da vinda desta aurora, embora a manhã tarde há tantas décadas, talvez desde sempre. E esta demora muitas vezes me faz estremecer na dúvida: havemos mesmo de amanhecer?