segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O vírus do amor dentro da gente

Inspirada ao ler um texto do poeta Jeová Santana sobre Gabriel Garcia Marques, resolvi publicar aqui no blog uma resenha que escrevi há alguns anos sobre uma de suas obras, diga-se de passagem, a minha preferida, "O amor nos tempos do cólera", e sua adaptação cinematográfica. Não esperem os leitores uma crítica acadêmica ou um olhar técnico sobre o filme - eu reconheço a minha insignificância nesta área, eu não sou cinéfila, tratam-se apenas das minhas impressões pessoais sobre o filme. 

O vírus do amor dentro da gente

Durante uma viagem, há alguns anos, me hospedei numa pousada em que havia uma biblioteca. Foi lá que, pela primeira vez, abri um volume de O amor nos tempos do cólera. Ao contrário do que esperam os leitores, não vou dizer que fiquei o restante da viagem com o livro entre as mãos, esquecida da paisagem e das pessoas que me cercavam. Desse primeiro contato com o livro, ficou uma viva impressão do seu primeiro parágrafo, que li sucessivas vezes. Em especial, a primeira frase: “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados”. Belíssima, sonora. Digna de ser lida e relida.
A primeira frase já prenuncia a grandeza do livro e seu tema, nada inovador e sempre inesgotável: os amores contrariados. Nas cerca de 400 páginas do romance, se desenrola a história de Florentino Ariza, um telegrafista que, ao fazer a entrega de um telegrama na casa de Lorenzo Daza, visualiza por uma janela a filha do comerciante, Fermina Daza. A rápida visão foi suficiente para inocular um amor incurável, que resistirá por décadas e transporá todos os obstáculos com paciência.
A epidemia do cólera se faz presente no enredo e indica o estado sanitário da Colômbia – e de toda a América Latina – na passagem do século XIX para o XX). Mas a principal doença de Florentino Ariza é o amor. Por mais lugar comum que essa frase possa parecer, não podemos dizer o mesmo da história de Florentino Ariza. O personagem do livro é um romântico, na sua concepção e vivência do amor, nas maneiras de vestir e no modo de escrever cartas. E o amor realmente lhe causa náuseas, dores, febres e suores, como uma doença. Trânsito Ariza, a mãe que o concebera num caso de amor adúltero, e que o criara, portanto, sem o pai, já casado, achava glorioso sofrer por amor. E incentiva, a princípio, a overdose sentimental pela qual envereda Florentino, numa longa correspondência amorosa com a jovem estudante Fermina Daza.
Um dos aspectos mais interessantes da obra, portanto, é a construção do sentimento entre Fermina Daza e Florentino Ariza à distância e, sobretudo, através da palavra. A valsa composta por Florentino para a sua “deusa coroada” – tocada à distância, mas num local estratégico para que o vento leve a melodia à sacada de sua amada – é uma imagem poderosa dessa distância. E os códigos da paixão e da entrega amorosa (aparições fortuitas, olhares, flores secas, cachos de cabelo) alimentam uma espera que se compraz não apenas na perspectiva de realização amorosa, mas que se delicia em si mesma.  Florentino coloca a trança colegial de Fermina Daza na parede, como um troféu ou uma insígnia religiosa, longamente contemplada e adorada.
Fermina Daza se apaixona pelas palavras de Florentino Ariza, pelo enredo de um amor proibido (que ganha ares épicos na viagem que faz, forçada pelo pai, à sua terra natal, para que ela cortasse relações com o telegrafista) e não pelo moço, em si. Tanto que, ao vê-lo a sua frente, real, palpável, tem a consciência súbita de que não o ama. Percebe o que verbaliza páginas e páginas depois: trata-se de uma sombra e não de um homem. O maravilhamento de Florentino diante da beleza de sua amada contrasta com a confusão, o constrangimento e até mesmo a repugnância que ela sente naquele momento em que os dois se encontram no mercado, depois da volta de Fermina daquela longa viagem, quase um rito de passagem que sinaliza sua mudança de menina para mulher.
A construção do amor pela palavra, portanto, é um aspecto essencial do livro. Aspecto esse que se perde, em grande parte, na adaptação do romance por Mark Newell. O filme, lançado em dezembro do ano passado, transpõe para a tela os principais acontecimentos do enredo, de forma coerente, mas não consegue transmitir os aspectos mais sensíveis e significativos da obra.
Garcia Márquez relutou muito em vender os direitos autorais de sua obra para o cinema hollywoodiano, e só o fez com a promessa de que o filme seria fiel ao romance. Não podemos dizer que não o seja. Não há, no roteiro de Ronald Harwood, cena ou episódio que não constem no livro. Porém, a velocidade de encaminhamento do enredo, no filme (em frente à longa e significativa espera amorosa que prevalece no romance), o torna uma história bastante diferente. Quem assiste ao filme não consegue, de fato, perceber a sensibilidade do livro. Os diversos símbolos da construção do amor entre os protagonistas, citados acima, e o erotismo afetuoso do livro não são aproveitados na adaptação cinematográfica.



Obviamente, qualquer adaptação cinematográfica de uma obra literária requer recortes, encaixes, e um encadeamento cênico que modificam a “velocidade” da apresentação da narrativa. Mas, no caso desse filme, em específico, isso se torna mais problemático, uma vez que a passagem do tempo é um dos temas da obra. Além disso, um outro aspecto que prejudica a abordagem do tema da passagem do tempo é o fato de que a atriz Giovanna Mezzogiorno interpreta Fermina Daza na juventude, quando adulta e idosa; já para o papel de Florentino Ariza, há dois atores: , que o interpreta na juventude e Javier Barden, que o interpreta na fase adulta e na velhice. Nesse sentido, o envelhecimento dos dois personagens não parece ocorrer de forma simétrica, causando um certo estranhamento. A interpretação dos protagonistas merece elogios, em especial a de Javier Barden, que aparece, em muitas cenas, um tanto curvado, com olhares desculposos – quase um gauche na vida, como diria Drummond.
O filme possui uma boa caracterização de época e ótima fotografia de Affonso Beato. Mas incomoda aos nossos ouvidos latino-americanos ouvir o filme num inglês com sotaque latino, quando esperávamos assistir um filme em espanhol (principalmente considerando a origem latino-americana do romance, da trilha sonora, composta pela conterrânea de Márquez, Shakira, e de boa parte do elenco).
Enfim, o filme decepciona quem espera ver Garcia Márquez nas telas. O livro, sem dúvida, é uma obra prima da literatura latino-americana, mas o filme não se enquadra na classificação de obra prima do cinema.  

Ficha Técnica
O Amor nos Tempos do Cólera
Love in the Times of Cholera EUA, 2007 - 138 min
Romance
Direção: Mike Newell
Roteiro: Ronald Harwood, baseado no livro de Gabriel García Márquez
Elenco: Javier Bardem, Giovanna Mezzogiorno, John Leguizamo, Benjamin Bratt, Catalina Sandino Moreno, Liev Schreiber, Fernanda Montenegro 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Para além do riso

Na semana passada, tive a felicidade de lançar mais um livro. É muito emocionante ver que aquela história, aqueles personagens, aquelas palavras que moravam apenas dentro da minha mente ganharem forma e passearem por aí. Na última terça, falei sobre esse processo de dar forma aos personagens, sobre a "gestação" deles e suas peripécias. Se quiser conferir, é só entrar no link:

https://www.youtube.com/watch?v=XdIEFmBS7Kk

Durante este bate-papo, foi impossível não falar de umas das questões que permeiam a obra: a violência doméstica. Porém, há outro tema relevante na vida de Jéssica não mencionado no hangout (que encerrei falando do quanto eu ainda tinha por dizer sobre o livro): o racismo. Sim, Jéssica é negra. Não, isto não está escrito na primeira página, porque este fato não determina o caráter, a personalidade de Jéssica, embora seja importante na sua identidade e, principalmente, na visão que a sociedade tem dela. Uma sociedade que, obviamente, recusa-se a enxergar-se como racista, e que, por isso mesmo, está longe de superar seus preconceitos. Como eu disse anteriormente, o que não é nomeado não existe.
Mas não estou falando sobre mais um detalhe deste livro, simplesmente. Trata-se, mais uma vez, de uma forma de lidar com aquilo que me consome: quando a realidade me cutuca, escrevo. E eis que, coincidentemente, na mesma semana em que publico um livro que aborda as tantas veladas violências, presencio uma cena que me deixou profundamente chateada, e, mais, preocupada.
Entrando em uma sala de aula, um grupo de alunos ria, gargalhava, e parei para ouvir as piadas que contavam. Nesse momento preciso da história nacional, em que um caso de racismo foi levado à justiça; em que se discute em cadeia nacional o assunto, meus alunos contavam piadas racistas. A que eu ouvi era resumidamente assim: "Um homem estava se afogando, e o salva-vidas era, assim, moreno. Aí ele pulou na água, mas quando chegou perto do homem, ele empurrou o salva-vidas e disse: - Sai, cocô." Risos, gargalhadas. E eu, pasma. Mais que pasma, ofendida. Sim, ofendida, pois embora qualquer um que olhe minha foto diga que sou branca; embora eu jamais tenha sido discriminada diretamente pela cor da minha pele, eu sou um ser humano ainda capaz de se colocar no lugar do outro, ou lutando para não perder essa habilidade, tão em falta atualmente.
Tudo o que eu consegui me perguntar foi: será que estes jovens não assistem televisão? Não estão acompanhando o que está sendo discutido na mídia? E minha pergunta mais angustiosa: será que eles realmente acham que a cor da pele de uma pessoa ser mais escura faz com que ela possa ser comparada a um cocô? Será que eles não percebem que eles chamaram os negros (detalhe: nem se referiram a eles assim; precisaram do que consideram um eufemismo) de "merda"? Será...?
Ah, essa professorinha boba que se aflige por causa de uma piada, podem pensar os pragmáticos. Eu me aflijo. Esse episódio é mais uma bofetada a nos dizer o quão distante estamos de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa. E tenho certeza de que estes alunos não reconheceriam serem racistas. Não, imagina, eu tenho amigos negros. Há pessoas negras na minha família. Isso foi só uma piada, coisa boba... Afinal, o que tem de mais chamar alguém de macaco? Esse é o discurso cordial da maioria dos brasileiros. A minha resposta é muito simples: é "só uma piada" ou "uma coisa normal no estádio" enquanto não dói na nossa pele. É simples assim. Pense em uma criança que ouve desde pequena piadas como essa. Ela vai internalizar, mesmo que inconscientemente, que é uma merda. Ou que só faz merda. Ou que é um animal, um inferior (não foi essa a justificativa para que se usou para se escravizar o negro?). Se o leitor acha que exagero, converse com pessoas vítimas de preconceito racial (é muito fácil, todos os negros o foram, sem exceção). Converse sobre a percepção deles destas falas, destas piadas, dos olhares que eles recebem ao entrar em uma loja cara... se conseguir, pois o assunto não é fácil. É um tabu. Nesse sentido, recomendo também o vídeo abaixo, uma ótima entrevista com o rap Emicida:

https://www.youtube.com/watch?v=n7DcbOpKUw8

Espero que os leitores de "Janelas Abertas" também reflitam sobre isso a partir de algumas situações descritas no livro. Mas, mais que tudo, que essa sociedade que se julga sem preconceitos e sem tabus possa olhar com mais clareza para si própria. E que não se engane: o preconceito é perigoso. A discriminação é uma forma de desumanização, e ao olhar o outro como menos humano, autoriza-se a exploração, a violência, o extermínio. É isso que a história da humanidade nos conta. Afinal, o que tinha de mais em falar mal dos judeus? E retratá-los de forma ridícula e pejorativa nos livros destinados às crianças, na Alemanha de 1930? Todos sabemos o desfecho hediondo desta narrativa. É só trocarmos a palavra "judeu" pela palavra "mulheres" ou "negros" ou "gays" e teremos outras narrativas de violência, pois o a intolerância, o ódio e a violência andam juntos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Abrindo Janelas

Aprendi a ler não apenas com os olhos, mas com as mãos que tocavam lentamente a capa, com dedos que apertavam levemente cada página para sentir a textura e a gramatura do papel. Tenho uma relação sensorial com os livros, tanto que, quando li pela primeira vez “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, fiquei encantada com a forma como ela descreveu a personagem com seu livro: “era uma mulher e seu amante”.
Mas até essa amante dos livros que vos fala rendeu-se às novas tecnologias. Meu novo livro, Janelas Abertas, publicado pela Editora Adonis, está sendo lançado em e-book. Passada a natural resistência ao desconhecido que habita todo ser humano, também fiquei maravilhada com as possibilidades ilimitadas: o e-book é uma janela que se abre em qualquer lugar. Não têm os limites físicos da distribuição que o livro impresso têm. Aí a escritora em seu voo imaginário pensa em seu livro chegando talvez a um leitor no Japão. Menos, Lia, diria o leitor realista... Tudo bem, foi só um voo, mas quem sabe o tempo não escancare as janelas.
E já que estamos testando novas formas de ler e se comunicar com esta juventude cada vez mais conectada, amanhã estou fazendo meu primeiro lançamento literário virtual. Por hangout, vou falar sobre Janelas Abertas, sobre como este rebento gestou-se antes de rebentar em texto; sobre as hesitações, angústias e alegrias que me trouxe... Ah, os filhos dão trabalho, sempre, mas a gente os cria para o mundo.



É engraçado falar deles, de meus livros e personagens, desta forma tão familiar – um dia destes alguém me olhou com estranheza quando falei de Jéssica, a protagonista de Janelas Abertas, como uma pessoa. Mas o fato é que a gente convive com nossos livros (e personagens) antes de escrevê-los, como bem sugeriu nosso querido Drummond em “Procura da Poesia”. E posso dizer que a convivência com Jéssica foi intensa e por vezes dolorosa. Ela é jovem, mas, em seus 17 anos, acumulou histórias de abandono, violência e privação que, infelizmente, não são tão incomuns entre as meninas brasileiras. Jéssica é um amálgama de tantas meninas e mulheres que conheci, cujas vozes foram se misturando na sua, que escreve, canta, mas que ainda não consegue gritar contra tudo o que a oprime.  
Mas não pensem que esta personagem não me trouxe alegrias. Não existe alegria mais legítima do que abrir janelas em paredes que pareciam esmagar-nos. Jéssica saiu do quarto apertado e escuro da sua infância. Ela caminhou pelas ruas de Campinas. Ela descobriu um caderno verde, poemas de Cecília Meireles, amizades fieis. Ela ainda não sabe tanta coisa sobre si mesma e sobre seu passado, o mundo ainda parece muito hostil para uma garota como ela. Mas não é que a menina nos surpreende, no final?

Espero que o diálogo com Jéssica (que nem sempre é tranquilo) também abra aos leitores as janelas da indignação, da perplexidade e também da esperança e da alegria. Porque Jéssica, assim como eu, tem essa alegria teimosa: de ser alegre de propósito, só de pirraça, nesse mundão de tanta tristeza.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ventos de agosto

Setembro começa cinzento e com chuva. Como a dizer que agosto terminou, mas a primavera ainda está longe. Teremos de padecer um pouco mais até as flores chegarem - não só aos jardins, mas às nossas relações. Agosto me fez pensar muito em como deixamos os espinhos se sobreporem às pétalas nas nossas conversas diárias. Em como conviver tem sido o maior desafio da humanidade, com pessoas que se ouvem cada vez menos e que gritam cada vez mais. Neste último mês, vivi situações em que constatei, mais uma vez, a dificuldade e até incapacidade de se ficar em silêncio. Silenciar é difícil... E ouvir o outro e a si mesmo requer silêncio.
Mas ontem, último dia de agosto, a chuva chegou na noite e as gotas graúdas amansaram meu coração. O vento era forte e pedi a ele que levasse embora o stress, a raiva, as decepções de agosto, esse mês que parecia não ter fim. E eis que joguei ao vento estes versos:

Ventos de agosto
Levem as lástimas
Deixem cair as sementes
Para que setembro floresça
E minh'alma sonolenta
Possa tomar um sol de manhã
Um ar de primavera frágil
Um gole de esperança instável. 


Que setembro nos traga mais chuvas, que elas lavem e levem tudo o que pesa, que aflige, que não deve ser guardado...