segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um sorriso de Brás Cubas

Saúdo a nova semana que chega, com alívio. A semana anterior teve horas tão pesadas, com uma tensão tão densa que quase se podia tocá-la com as mãos. Não era apenas a última semana antes do segundo turno das eleições, mas uma semana cheia de afazeres que não terminavam nunca. Uma semana em que um anjo safado, um chato de um querubim, predestinou que eu teria que trabalhar com algumas pessoas estressadas. Bem poucas, na verdade, mas com o impressionante poder de tirar a calma de todos ao seu redor. Ou quase. Porque, no meio de tudo isso, eu estava lendo Machado de Assis.
Hein? Pode se perguntar um leitor incrédulo, pensando talvez que haja algum autor de auto-ajuda com este nome. Não, trata-se dele mesmo, do “grande Machado”, como diriam alguns, do Joaquim Maria, como eu diria, na minha pretensão de intimidade com este autor que me proporcionou e proporciona tantas horas de prazer e reflexão.
E não é que lá estava eu, enquanto as pessoas ao meu redor se estressavam e mordiam a própria sombra por coisa pouca, com Dom Casmurro em minhas mãos? E pude recorrer a passagens fascinantes desta obra que nunca se esgota. Sim, eu já li este livro muitas vezes, E a cada vez que vou abordá-lo em uma aula, dou-me novamente o deleite de revisitá-lo. E a cada vez, percebo coisas novas.
Pobre daqueles que pensam que só se trata de um livro sobre adultério. Que pensam que sua grande questão é se Capitu traiu ou não Bentinho... Isso é o que está na superfície, mas há outras coisas mais profundas neste livro. Para mim, por exemplo, um dos seus temas mais interessantes é a passagem do tempo. Ou a persistência da memória, essa coisa difusa que também se molda ao sabor das paixões. Vejo o velho Bento Santiago a contemplar Bentinho e sua amiga Capitu, a companheira da meninice, como contempla os retratos da réplica da casa de Matacavalos. São imóveis, inertes, mortos. Não adianta tentar atar as pontas da vida, elas estão para sempre separadas. Só a memória, só a narrativa as une. O gesto da escritura é a única forma de lutar contra o tempo inexorável.
As pérolas que reluzem nas páginas do livro sobre este tema são várias, mas se encontram também em outros títulos do autor. Como esquecer do delirante passeio de Brás Cubas, no dorso de um hipopótamo, a contemplar a sucessão dos séculos – e concluir a repetição da tragicomédia humana por tantas civilizações? E as reflexões do menos irônico e mais melancólico Conselheiro Aires, em seus passeios pelas ruas do Rio, já no outono de sua vida (e da carreira do autor)?
Então eu volto para aquele “quase” do final do primeiro parágrafo. Diante dessas reflexões sobre o tempo, com as quais Machado de Assis sempre contribuiu, acho que estou aprendendo a sorrir mais. Nesta semana, eu me flagrei com um sorriso que um colega classificou como “de Monalisa”, mas eu diria ser “um sorriso de Brás Cubas”, aquele sorriso de quando se compreende o quanto a humanidade é lamentável e se resolve aceitar o fato. Diante daqueles que se julgam tão importantes, que se estressam tanto (porque eles precisam fazer tudo, afinal, ninguém o faria tão bem e perfeitamente), que perdem completamente a gentileza para com os que estão ao redor, ou com aqueles que pensam diferentemente, nada nos faz tão bem quanto um sorriso de Brás Cubas.
E pensar na inexorabilidade do tempo me acalma, porque me faz enxergar a inutilidade de tanta preocupação, de tanto desgaste. Alguns problemas são pequenos demais se pensarmos na dimensão do mundo e de sua história. Afinal, daqui a pouco tempo, seremos apenas retratos na parede – talvez nem isso, nessa era em que quase não se imprimem mais fotografias... 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A menina, as armas e os livros

Um dia vi um brilho intenso nos olhos de um homem que a vida em muito endureceu. Logo o brilho se transformou em uma lágrima que escorreu pelo rosto do homem que raramente chorava. Este homem era meu pai. Ele discretamente enxugou essa lágrima antes que outros a vissem, antes que fotógrafos chegassem, junto com a minha irmã. Era o dia de sua formatura na Faculdade de Direito. Mais do que um diploma, era um dia histórico para nós: pela primeira vez na história da nossa família, uma pessoa teria um diploma de graduação. Mais do que isso: era a primeira mulher a conquistar esse lugar.
A lágrima era misto de orgulho, de alegria, mas também testemunhava os sofrimentos e as renúncias que certamente meus pais fizeram para que eu e minhas irmãs estudássemos nas melhores escolas. Mais tarde, naquele mesmo dia, meu pai disse uma frase que está gravada em minha mente: "Não me arrependo de nenhum dia, de nenhum centavo que investi em vocês". Embora a linguagem pareça tão mercadológica, isso significa "Eu amo vocês, minhas filhas" ou "Eu me orgulho de vocês, minhas filhas", na linguagem do homem que saiu de casa aos 17 anos com duas mudas de camisa e um sapato furado, trabalhou como jardineiro, pedreiro, metalúrgico, segurança e, enfim, montou um pequeno comércio. Do homem que, diante de uma pequena ascensão social, optou por mudar suas filhas de escola, ao invés de realizar seus sonhos de consumo. Do homem que muitas vezes prezou mais a contabilidade que o prazer, frustrou suas filhas adolescentes por não lhes dar algumas roupas, viagens e festas, mas que jamais se recusou a comprar um livro. E isto mudou a minha vida.
Venho de uma família machista (como tantas no Brasil) em que a educação das meninas não é a prioridade. Tenho uma prima cujo irmão fez curso pré-vestibular, ingressou na universidade, mas ela não teve o mesmo apoio da família. Para ela, não havia recursos para o pré-vestibular, nem para a mensalidade de uma faculdade privada, nem qualquer apoio para que ela saísse da cidadezinha em que morava para fazer uma universidade pública (afinal, há exemplos na família de mulheres que saíram da casa dos pais para estudar, trabalhar, e "se perderam"). Sim, queridos, século XXI, não estou relatando o que aconteceu com a minha bisavó, infelizmente! No fim de semana em que eu fazia o vestibular da UNICAMP, minha mãe teve que ouvir de um tio a seguinte pérola: "Pra que estudar tanto para limpar bunda de criança?". Ele riu, minha mãe, não. Ela, com toda a delicadeza que lhe é peculiar, disse: "Eu espero que minhas filhas limpem bunda de criança porque eu quero muito ser avó, mas elas não vão fazer só isso na vida".
São muitos os exemplos que se espalham para além da minha família, na qual também há exemplos notáveis de ruptura com este pensamento retrógrado e opressor, como meus pais, que criaram três meninas com livros nas mãos. Nesta semana, ao saber que o Prêmio Nobel da Paz havia sido entregue a  Malala Yousafzai, fiquei muito feliz e emocionada. Para os que não sabem, Malala é uma adolescente de 17 anos que, com apenas 12 anos, começou a escrever sobre a situação das meninas no Paquistão, sob o regime talibã. O pai de Malala, dono de uma escola, contrariava o regime ao permitir que as meninas estudassem, e estimulava a militância da filha em favor da educação escolar feminina. Em 2012, aos 14 anos, houve uma tentativa de assassinato, na qual Malala levou um tiro no rosto e um no pescoço, ficou em coma por vários dias, mas, felizmente, sobreviveu e foi transferida para um hospital na Inglaterra. Recuperada, ela escreveu uma autobiografia e continua sua militância em favor da educação das meninas.

 Malala Yousafzai, Prêmio Nobel da Paz em 2014
O exemplo de Malala me move e comove. Sempre pensei na sorte tão diversa que tantas mulheres da minha família tiveram por não terem acesso a uma educação que lhes ensinassem que elas tinham valor, que eram tão inteligentes quanto os homens e que o mundo também era grande para elas. Que não é a presença de um homem, uma aliança no dedo ou a ausência destes que definem o seu valor. Que lugar de mulher é onde ela escolhe estar. Que o que você lê, reflete e pensa é mais importante que o seu peso ou a cor do seu cabelo. E principalmente: que, independente do sexo, somos seres humanos dignos de respeito, e  por isso jamais devemos aceitar sermos diminuídas, humilhadas, oprimidas ou agredidas de qualquer forma.
Sim, foi a minha educação escolar, foram os livros que chegaram às minhas mãos que me fizeram enxergar a mim mesma como esse ser humano digno de respeito. A literatura me formou como um ser mais sensível e humano, capaz também de respeitar mais os que estão ao meu redor. A literatura alimentou minha ojeriza à violência, à opressão e meu amor à liberdade, "essa palavra que o sonho alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda", como disse a Cecília Meireles. E por isso, ainda acredito que o livro é a coisa mais subversiva que colocaram em minhas mãos. Esta é a razão pela qual os regimes ditatoriais temem que uma garota leia, que faça do livre pensamento e de suas palavras as suas armas, resistindo às armas de fogo e não se intimidando diante delas. 
E Malala nem suspeita que temos isso em comum: que tivemos pais que acreditaram na importância da nossa educação, que acreditaram no nosso valor e na nossa inteligência.
Obrigada, pai! Obrigada, Malala!

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Posso, sem armas, revoltar-me?

Começo a segunda - e a semana - lendo Carlos Drummond de Andrade. Por que o verso é minha cachaça, como eu já disse em outro post. Ontem, durante as apurações das eleições eu estava, literalmente, bebendo cachaça. Agora, segunda de manhã, pega mal. Temos que manter a sobriedade, embora nos pareça que todos se embriagam, tamanha incoerência entre o que se diz e o que se faz.
Não, não vou falar exatamente dos resultados das urnas. Na conversa que travo com Carlos, mais uma vez - já conversamos tanto que o trato pelo primeiro nome - ele me fala sobre a "ração diária de erro, distribuído em casa", pelos ferozes "padeiros e leiteiros do mal", e isso já na década de 40. Toma-me a sensação de que realmente a humanidade anda em círculos.
Mas discuto com Carlos: quem são estes "padeiros e leiteiros do mal"? Ah, a minha insolência em discutir com os poetas que já têm seu capítulo no livro didático de literatura e até caem no vestibular... Mas foi você um dos que me ensinou a ser insolente, Carlos, aguente agora. Mas Carlos só me responde que "o tempo não chegou de completa justiça", que "o tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse".
E que impasse! Como eu disse antes, não é o resultado das urnas. É tudo o que vem antes dele, e tudo que o motiva. Começo pelo mais grave: a profunda lacuna educacional que impede que as pessoas compreendam o que é a política. E a profunda (e cômoda) falta de consciência que leva a maioria a sempre colocar a culpa de tudo "nos políticos", esses seres que vieram de Marte, talvez, já que ninguém se identifica abertamente com eles.
A coisa mais desoladora é ver essa contradição. Pessoas que falam em mudanças, mas nem conseguem enxergar as mudanças que estão em curso, nem compreender que elas ocorrem em um processo (e não por um passe de mágica) que envolve toda uma sociedade com velhos e lamentáveis hábitos. Pessoas que reclamam do estado em que as coisas estão, falam da necessidade de uma "nova política" mas mantêm um governo estadual que está no poder há décadas, tempo que lhe foi suficiente para consolidar a falência da escola pública e a total desvalorização do professor, entre outras provas de incompetência e descaso. Pessoas que reclamam da impunidade, mas quando se dirigiam ao seu local de votação com seu carro, fizeram questão de estacionar em local proibido e dificultar absurdamente o trânsito; ou que, sem documento com foto, faziam aquele escândalo em sua seção quando o mesário dizia que sem este documento ele não poderia votar. Claro: onde estão os meus direitos? Deveres, hein, o que é isso?
Carlos me responde que "é tempo de partidos, tempo de homens partidos", mas isso ficou no passado, querido poeta. Hoje as pessoas se revoltam contra os partidos, dizem que não acreditam na política partidária, que "político bom é político morto" (pasmem, ouvi isto ontem, literalmente!), que se não fosse obrigatório não votariam. Ah, eu preciso parar de fazer análise do discurso nos almoços familiares, pois está ficando cada vez mais difícil engolir. Enfim, vos pergunto, concidadãos: vocês realmente acham que em um período da história em que não existiam nem eleições, nem partidos, estávamos melhores? Quando reis governavam hereditariamente por direito divino estávamos melhores? Por favor, me instruam: citem um sistema de governo melhor, proponham-no publicamente, não guardem a  sabedoria apenas para vocês.
Ironias à parte, estou um pouco cansada da lamentação inócua, que só faz eco e cai no mais absoluto conformismo. Eu não penso que nosso sistema político e partidário seja ótimo. Mas faço questão de votar. Pessoas morreram para que eu tivesse esse direito. E se eu não estou satisfeita com os partidos, seus líderes e seus eleitos, posso dizer isso abertamente neste blog, ou propor a fundação de um novo partido, ou eu mesma me candidatar por um deles. Pessoas também morreram para que eu tivesse esses direitos.
"Por fogo em tudo, inclusive em mim" não é uma boa opção, Carlos. Sim, sei que às vezes somos tentados a isso. Eu também já sonhei "dinamitar a ilha de Manhattan", inclusive, já o fizeram, mas creio que isso não resultou em nada positivo. Sei que você sorrirá, talvez me chamará ingênua, querido poeta, mas eu acredito que o mundo é resultado das nossas escolhas, ou da nossa omissão. Então, se não estamos felizes com as opções que temos nas urnas, isso é sim resultado das nossas escolhas e omissões. Acabo de ver um vídeo do Porta dos Fundos sobre isso. Ele expressa a insatisfação do povo brasileiro com a "falta de opções" em relação aos políticos. Mas não questiona minimamente o que fazer diante disso. Que pena que o problema não seja na urna, mas naquela pecinha que fica bem em frente e aperta os botões! Para quem quiser ver o vídeo, acesse:

https://www.youtube.com/watch?v=e8h7D97w5Bo

O povo brasileiro quer continuar pensando que aquela lista de candidatos não nos representa. Não creio que apenas por ingenuidade, mas também por comodismo. Sim, aquela lista de candidatos colada nas paredes das zonas eleitorais pelo Brasil afora representa a nossa sociedade. Se eles não têm noções suficientes sobre a gestão pública, se são corruptos e desonestos, se só querem se eleger para "mamar nas tetas do governo", eles aprenderam esses valores na sociedade brasileira que os formou. E se eles foram eleitos, é porque alguém se identificou com eles e com seus discursos, não é?
"Preso à minha classe e a algumas roupas", angustio-me, Carlos. Vejo essa falta de auto-responsabilização e essa desqualificação da política institucional como algo muito perigoso. Afinal, com a justificativa da corrupção e do caos que reinavam no país, já instauraram ditaduras antes. Será que ninguém percebe que delegar o trabalho de "salvar a pátria" para alguém pode parecer mais cômodo, mas o resultado poder ser hediondo? Será que Hitler e outros tantos ditadores já não nos mostraram essa lição?
"Em vão tento me explicar, os muros são surdos", Carlos. Ao menos tenho você para conversar. Mas não me contento, preciso falar para mais pessoas, pois "meu coração não é maior que o mundo, é muito menor, nele não cabem nem as minhas dores". Preciso escrever.
Mas, às vezes, me questiono: "devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?" Hei de ver uma flor "furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".
Enquanto a flor não nasce, resta-nos suportar a náusea.