sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O food truck e o frangão da Tonha



Sim, o aniversário já passou... Mas minha nostalgia continua. É a velhice, dirão alguns maledicentes. É fevereiro, direi eu. E um pouquinho de tempo para pensar e escrever.
Ontem estava assistindo a um programa de variedades na televisão, enquanto almoçava. É impressionante, eu não me contento em comer a comida do meu prato, eu tenho que comer com os olhos os pratos que não posso comer. Masoquismo? Talvez, mas adoro ver programas de culinária quando almoço ou janto sozinha.
E foi em um desses programas que comecei a pensar (ai, esse velho vício) nas coisas que perdemos porque complicamos. Antes, havia cozinheiras e cozinheiros, agora, há chefs. Antes, as pessoas cozinhavam, faziam um rango legal; agora elas se dedicam à culinária ou, se for mais chique ainda, à gastronomia. Antes, a gente reunia o pessoal em casa, preparava a janta (e não um jantar), algo bem gostoso para comer como se não houvesse amanhã; hoje, vemos propagandas de receitas “para impressionar os amigos”. Se eles são realmente seus amigos, para que impressioná-los? Ou se eles não são tão seus amigos (a ponto de ser preciso impressioná-los), por que convidá-los para comer na sua casa? São perguntas que perturbam o meu coração...
Comer é algo necessário, instintivo, e também prazeroso. Ultimamente, o ato de comer tem perdido essa naturalidade, tem se tornado quase um ritual, seja médico, seja educativo (nunca vi tantas crianças com “problemas para comer”), seja de sofisticação social. Algo que me incomoda é ver receitas simples e populares se transformando em “gourmet” – é só colocar esse adjetivo mágico e tudo fica chique e triplica de preço. Antes, pão com mortadela era coisa de pobre, mas depois que virou patrimônio do Mercado Municipal de São Paulo (que de mercadão não tem nada!), a mortadela subiu de preço. Como costuma-se dizer: alegria de pobre dura pouco... E a mudança de nomes? A asinha do frango era coisa de pobre, mas aí foi rebatizada de drumete (olha que chique!), e o novo nome justifica novos usos e preços.
Mas nada me choca mais do que o food truck! Eu ouvi um colega falar essa palavra, e depois, ela apareceu justamente no programa culinário que eu assisti ontem. Brasileiros falando da culinária dos food trucks! Onde foi parar a nossa boa e velha barraca de comida, nosso conhecido trailer de lanche, nossa tradicional comida de rua? Para que adotar uma palavra estrangeira se já temos estas, tão boas, conhecidas e eficientes na comunicação? Explica-se: é que o food truck é diferente, ele traz um cardápio gourmet! Ah, bom!
Lembrei-me do trailer de lanche preferido da minha adolescência (Caçapava tinha dezenas deles e não tinha Mc Donald’s!): o Trailer da Tonha. O seu melhor sanduíche se chamava “Frangão”: peito de frango cozido e desfiado, frito na chapa com bacon, ali na sua frente, pois já se começava a comer pelo cheiro. O pão tostando, ao lado, ansioso pelo recheio, e você, pelos dois... Ela jogava uma colher generosa de vinagrete, esperava o recheio secar, jogava em cima uma boa quantidade de mussarela ralada, que derretia maravilhosamente. Tudo isso ia para o pão enorme. E para suas papilas gustativas ansiosas!
A gente atravessava a cidade para comer um frangão da Tonha, a pé ou de bicicleta. E não tinha chef, nem cardápio gourmet, nem ingredientes importados. Saudade dessa comida tão simples, tão despretensiosa, que não se ousava chamar culinária.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Sobre aniversários e iogurtes

Aniversário. Amanhã eu comemoro mais um ano vivido e saúdo um novo ano que começa. Minha sensação de gratidão é imensa: eu vivi tanta coisa maravilhosa nesses 35 verões que ficam para trás... e também algumas coisas perturbadoras, dolorosas, enfadonhas – nesse pacote completo que é a vida.
Véspera de aniversário é uma data que traz muitas lembranças e muitas saudades. A gente se lembra das festas que já fez. Das pessoas que estavam nelas e não estão mais, e também daquelas que continuam nas suas festas e você as consegue visualizar no seu aniversário de 60 anos. E lembra até das tubaínas Maracanã e daquele bolo com glacê rosa dos seus 7 anos, em cujas laterais se notou, ao cantar o parabéns, as marcas dos dedos de todos os primos ... Aquelas festas com gente demais e comida de menos. Do luxo extremo da mãe perguntar o que a gente queria no almoço do dia do aniversário. Eu sempre pedia lasanha e comia 4 pedaços enormes, não sei onde ia se acomodar toda aquela massa, naquele corpo pequeno de criança. Não importa: no calor de fevereiro, eu deitava no piso da área de casa como uma jiboia que tivesse comido um boi. E ficava ali, jiboiando, feliz da vida...
Acaricio meu passado, minha infância pobre mas digna – explico: não se viajava para a Disney (no máximo, passávamos um domingão em Maranduba), mas não faltava carinho nem comida. E até algumas privações, lembradas hoje, têm sua graça. Eu sempre me lembro de um episódio hilário: na compra do mês (sagrada nos anos 80, com aquela inflação galopante), minha mãe comprava uma bandeja com 6 iogurtes, palavra refinada demais para nós, que falávamos danone. Éramos apenas 3 crianças e a dividíamos irmanamente em 2 danones para cada. Ao invés de tomar tudo de uma vez, eu tomei o primeiro e resolvi tomar o segundo apenas na semana seguinte.
Passaram-se 7 dias, e lá fui eu, salivando, à geladeira. Abri e vi o potinho de um branco opaco. Mas, ao pegá-lo, senti que ele estava leve demais e havia um furo na tampa metálica. Sim, alguém sorrateiramente fizera um pequeno furo e fora, provavelmente, tomando um gole de cada vez, furtivamente, toda vez que abria a geladeira, para que eu não percebesse. Senti-me infeliz, traída, roubada, o mundo me mostrava sua face mais cruel! Procurei minha mãe, minha avó, clamei por justiça! Nada foi feito. Aprendi a duras penas o sentido da palavra impunidade. O culpado nunca apareceu, mesmo com a minha investigação minuciosa. Esse mistério é uma névoa a envolver o passado dos Souza de Caçapava (à maneira dos Smith, de Yorkshire...).
Lição para a vida? Nunca deixe para a semana que vem o danone que você pode tomar hoje. Substitua a palavra danone por sua bebida predileta e vamos para o bar, comemorar meu aniversário! 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O maravilhoso vir a ser



Fevereiro, mês tão esperado! Não, não é o carnaval que alimenta os sonhos dos jovens, mas as listas de aprovados nos vestibulares. Nas últimas semanas, foram muitos posts no Facebook celebrando aprovações nas universidades federais e estaduais. Os meus olhos brilhavam de contentamento quando via mais uma mensagem de um ex-aluno, com tantas interjeições que quase era possível ouvir seu grito de alegria. Tantas mensagens carinhosas de agradecimento pelos anos de ensino, paciência e muitas, muitas cobranças e puxões de orelha.
Mas essa sensação de vitória, de triunfo, não é o mais interessante, para mim. Lembrei-me de quando eu mesma vi que tinha sido aprovada no vestibular da Unicamp, de quando peguei um ônibus para ir até a universidade fazer minha matrícula. A sensação de andar por aquele campus tão grande, que possui ruas e avenidas, era muito mais do que o orgulho de ter ingressado, depois de um concorrido vestibular, em uma das maiores universidades do país. Era a sensação de que eu estava caminhando por uma nova existência, a qual eu não sabia exatamente como seria. A iminência de começar uma vida nova era deliciosa: carregar nos braços não apenas cadernos em branco, mas toda uma vida ainda a ser escrita.
Há alguns anos, era março; eu estava com minha irmã mais velha no carro e, no semáforo, fomos abordadas por calouros encharcados de tinta guache e felicidade. Naquele momento, vi-me aos 18 anos, pedindo moedas no mesmo semáforo, que foram muito bem gastas em chopp no final da tarde, que confraternizou calouros e veteranos. Entre as felicitações, estendi uma moeda a eles e segui meu caminho, mas a imagem daqueles jovens continuou comigo. Perguntei a minha irmã: “Você não tem saudade?”. Ela respondeu: “Do quê? De ficar no sol com a cara cheia de guache?”. Eu ri e falei: “Não, daquele vir a ser”. Ela me olhou pensativa e balançou a cabeça afirmativamente. Cheguei em casa naquele dia e escrevi para nós este pequeno poema:

30 anos
Saudades
daquele vir a ser :
sem rumo certo ou
certidão de posse,
carteira assinada,
chaves de todos
os tamanhos.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O presente do tempo

Chove a cântaros na cidade de Campinas. E eu estou escrevendo crônica na hora do almoço. E estou usando a palavra "cântaros". Talvez por isso esteja chovendo: hoje tenho tempo para almoçar minha própria comida, para gargalhar sozinha lendo uns textos hilários do Veríssimo e ainda para escrever, olhando pela minha janela um céu de cinza denso, como há muito tempo não se via por estas bandas. Tanta raridade junta, na visão popular-mineiro-filosófica, só podia dar em chuva.
É interessante como precisamos da carência de algo para se perceber como ele é importante. Não me refiro apenas à chuva, mas ao tempo. Separar esse tempo (mesmo que curto) para ler um texto que nos agrade, para fazer feijão com angu e mostarda refogada, para escrever o que passa pela cabeça... É uma delícia fazer estas coisas simples. Se alguém me perguntar o que quero ganhar no próximo aniversário, eu diria: traga-me algumas horas de absoluto ócio. Nem precisa embrulhar para presente, e mais: você não precisa me dar as horas, pode apenas compartilhar as suas comigo, para não perdê-las. Seria maravilhoso. Se vários amigos se juntassem e cada um doasse uma hora, e considerando a pessoa de sorte que sou, que conto os amigos do peito em mais de uma mão, teríamos mais que uma tarde de boa prosa, talvez cantoria e alguns versos, e certamente uma boa bebida.
A chuva continua seu fluxo lá fora, assim como o tempo. Mas aqui dentro da minha sala, seguro-o com as mãos, enquanto a contemplo. As gotas caem ininterruptamente e escorrem pelo vidro da janela. O barulho porém é suave, mansidão que meu coração precisa. Sei que daqui a alguns minutos o trabalho me espera, a louça, as contas, as obrigações... Mas nesse instante, não preciso de mais nada além desse instante. Tautologia que se explica: a plenitude é um estado em que não se deseja nada.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A autoritária (?) lista de leitura



Primeira semana de aula. Apesar de o corpo reclamar por acordar tão cedo (levantar antes do sol nascer não é natural, minha gente!), sinto-me feliz em retornar à escola. O abraço carinhoso daqueles que já são meus alunos há um ano ou mais e os olhares curiosos dos alunos novos sempre me trazem alegria e entusiasmo. Mas o dos alunos parece acabar quando a gente fala três famigeradas palavras: Lista de leitura.
Todo ano eu indico de 6 a 8 livros que os alunos devem ler ao longo do ano. Esta carga de leitura não ultrapassa a de 1 livro por mês. Sim, 1 livro em 30 dias. Não me parece muito, ao contrário, eu sempre li mais de um livro por mês desde os meus 12 anos... Mas para vários dos meus alunos, ler um livro por mês parece um fardo terrível, para não dizer impossível!
Geralmente, há dois tipos de lamento: o primeiro é o dos preguiçosos. Aqueles que não querem ler nem uma página por mês, quanto mais um livro. Com esses eu nem argumento. O segundo tipo é o dos rebeldes: geralmente são pessoas que gostam de ler, mas que se recusam a aceitar aquela lista específica de livros. Pergunto: vocês conhecem esses livros? Vocês conhecem esses autores? 99,9% diz que não, mas mesmo assim não gosta. Assim não dá, queridos! Vamos parar com esta história de não gostar de espinafre sem nunca ter comido... A motivação verdadeira por trás desta recusa é: não gostamos simplesmente porque a escola manda e professor diz que é legal. Se é escolar, tem que ser chato. Esse é o raciocínio? Argumento questionável, hein?
Porém, às vezes a gente escuta um argumento melhor e reconhece que ele merece uma resposta. Nesta semana, uma aluna me disse: “Professora, eu gosto de ler, não tenho nada contra ler um livro por mês, leio até mais. Mas por que você não deixa a gente escolher os livros?”. Pela classe, rumores de aprovação que logo viraram uma balbúrdia... Viva a liberdade! Abaixo a ditadura na aula de literatura (até rimou!)! Pelo fim da opressão dos livros escolhidos pela professora! Achei que era melhor argumentar antes que eles continuassem seu ímpeto revolucionário.
Não é de hoje que os alunos me questionam sobre isso. Por um lado, seria muito interessante que os alunos pudessem escolher suas leituras, pois isso poderia aumentar seu interesse pelos livros e sua adesão às atividades propostas nas aulas. Por outro lado, essa experiência poderia limitar muito a atuação do professor no sentido de ampliar as habilidades e o repertório de leitura dos alunos. Como? É simples: há alguns anos, fiz esta experiência democrática, deixei que os alunos sugerissem quais livros leríamos durante o ano. Resultado: uma lista de bestsellers juvenis e histórias em quadrinhos.
Não estou aqui dizendo que estes livros são ruins, principalmente porque o adjetivo “bom” ou “ruim” deve sempre ser seguido da palavra “para”. Ou seja, estes bestsellers podem ser narrativas ótimas, divertidas, mas a maioria dos que foram sugeridos, naquela ocasião, eram livros que não traziam uma linguagem interessante (ao contrário, ela era facilitada ao máximo), nem temas relevantes, que realmente enriqueceriam nossas aulas.
Portanto, em minha defesa de que o professor deve escolher o que seus alunos vão ler, apresento dois pontos principais. Em primeiro lugar, é preciso que os livros desafiem minimamente os alunos para que eles ampliem sua capacidade de leitura. Porém, infelizmente, ao escolher o que vão ler, a maioria dos alunos não quer de forma alguma sair da sua zona de conforto. Os livros que escolho, geralmente, oferecem uma estrutura e uma linguagem que vão obrigar até os alunos que têm o gosto e o hábito da leitura a pensar, a se esforçar um pouco. Pode parecer ruim, a princípio, mas os ganhos são muitos.
Em segundo lugar, considero importante que eu indique livros que meus alunos dificilmente escolheriam. Sim, estou aqui para ampliar o cardápio, apresentar novos sabores. Se nós, professores de literatura, só oferecermos ao aluno o livro que ele mesmo escolheria na estante da livraria, o que estamos acrescentando na formação dele?
Além disso, a sociedade, os PCNs, o ENEM, os vestibulares nos impõem a missão de apresentar aos alunos uma lista de “leituras obrigatórias”, “autores clássicos” etc... Para além da questão da simples cobrança: se um autor ultrapassou seu tempo, teve centenas de edições ao longo dos séculos, não vale a pena a gente conferir o que ele escreveu? Como eu digo para meus alunos quando eles torcem o nariz para o Machado de Assis: “Dá uma chance para o Joaquim Maria, vai...”. Às vezes, os livros que a gente pensa que devem ser uma chatice, só porque foram indicados pela escola, podem trazer agradáveis surpresas!

P.S. – Dedico este texto a todos os meus alunos, principalmente aos leitores apaixonados e questionadores!