quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Leda à beira do abismo

Leda à beira do abismo:
belo o que se mostra
escondido nas brumas
quero atirar-me
em seu banho de espuma
saiba embora
não há fundo no fosso
apenas o delírio do vento
o além dos limites da pele.

domingo, 31 de julho de 2016

A ignorância ilustrada

Li nesta semana uma reportagem lamentável, o que não é surpreendente, neste contexto em que, cada manhã, tenho medo do que vou ler nos jornais. "Médico debocha de paciente na internet", era o título da reportagem do portal G1 Campinas e região. A reportagem relatava que um médico, Guilherme Capel, que atendera no Hospital Santa Rosa de Lima, em Serra Negra, um paciente com pneumonia, teria postado nas redes sociais uma foto de um receituário do hospital com os dizeres "Não existe peleumonia nem raôxis". Obviamente, ele recebeu muitas curtidas e comentários de aprovação. Novamente, nada de novo sob o sol. O que talvez seja novidade, e creio que o jovem médico não esperasse, era ser reconhecido pelo paciente que atendeu, o qual, sentindo-se ofendido, compartilhou a foto com reprovação e fez com que o hospital tomasse providências contra o desrespeito, demitindo o médico e as enfermeiras que também participaram do deboche virtual. Surpreendido, o médico fez algo pouco surpreendente: procurou a imprensa para se retratar. Pediu desculpas ao paciente, disse que não quis ofender ninguém. É que ele já tinha atendido 100 pacientes naquele dia e estava apenas fazendo uma brincadeirinha para aliviar o stress. Mas que debochar de um paciente não era do seu caráter, da sua crença.
Ah, que bom que ele explicou, não é, minha gente? E, para meu pesar, a maioria das pessoas pensa assim. Lendo os comentários que seguiram as reportagens, vi pessoas achando um exagero o médico ter sido demitido. Outros, ainda defendendo a atitude dele de criticar quem "fala errado" e ainda se dando ao trabalho de corrigir gramaticalmente os comentários daqueles que criticavam o  médico ou elogiavam a conduta do hospital em afastar o profissional. Atitude esta que sempre me faz pensar sobre o estranho prazer que algumas pessoas têm em corrigir as outras.
Sou professora de língua portuguesa, e sinceramente, não sinto nenhum prazer em corrigir a fala das pessoas. Ao contrário, é constrangedor quando eu digo minha profissão e alguém fala: "deixa eu tomar cuidado com o jeito que eu falo... Ó, pode me corrigir, viu?". Não, senhores, eu não sou um leão-de-chácara da língua portuguesa. Eu não fico por aí vigiando como as pessoas falam. E acho a coisa mais deselegante ficar corrigindo as pessoas. Eu só corrijo textos dos meus alunos, em contextos bem específicos. E, na maioria dos casos, não trabalho de graça. Então, sintam-se bem à vontade para falar como quiserem!
Entretanto, já conheci profissionais das mais variadas áreas que adoram apontar quando alguém "fala errado", elas se sentem na obrigação de evitar que seu amado idioma seja "assassinado" (outra expressão que me dá calafrios). Se assassinássemos tanto o português, ele seria uma língua morta. E exatamente por ser uma língua viva é que ele apresenta tantas variantes, ainda mais em um país de analfabetos e analfabetos funcionais, que vivenciam a linguagem apenas na oralidade, que é tão mais fluida e mutável que a escrita.
Durante muito tempo reflito sobre esse hábito e sobre o famoso "meus ouvidos doem quando escuto isso". Creio ser algo bem diferente de amor ao idioma: concluo que se trata de uma forma de distinção. Se lhes parece estranho, explico-me. Vivemos em um país em que ler e estudar ainda é privilégio de uma elite econômica. Apesar da melhoria do acesso à educação ocorrido nas últimas duas décadas, esse privilégio ainda se mantém, considerando que a educação pública oferecida não tem qualidade. E as políticas educacionais mais inclusivas dos últimos governos federais (bolsas para alunos de baixa renda, programas de cotas e financiamentos estudantis) foram duramente criticados por essa elite.
Porque ter escolaridade, ter diplomas, é uma forma de se diferenciar desse zé povinho. Saber escrever e falar bem é uma forma de demonstrar essa suposta superioridade. Debochar de quem "não sabe falar" é a maneira mais clara de evidenciar essa distinção que tantos querem ver demarcada. Está ao lado de outras atitudes como exigir que a babá use uniforme em lugares públicos, mostrar a carteira de classe no dia das eleições (ao invés do RG) ou exigir na justiça que o porteiro lhe chame de doutor (outra notícia absurda que li nesta semana). É a nossa ignorância ilustrada. Não fui eu quem inventei essa expressão, infelizmente, pois a acho brilhante. Eu a li em um artigo que falava de pessoas que têm nível superior, muitas vezes, pós graduação, mas tal escolaridade não faz com que elas ampliem sua visão de mundo, que compreendam melhor sua sociedade, que se relacionem melhor com seu meio e com as pessoas. Elas não se tornam mais inteligentes ou competentes, apenas mais arrogantes.
Alguns leitores podem dizer que eu estou exagerando, assim como o hospital exagerou com o jovem médico (estou usando o adjetivo porque o vi em vários comentários como um atenuante de sua atitude, como se ele fosse quase um moleque, "não sabia o que estava fazendo, ainda vai amadurecer"). Sem me alongar na nossa conhecida condescendência com as más condutas de pessoas brancas e de classe média, respondo que, embora nem todas as pessoas que debocham do "falar errado" dos outros tenham diplomas ou um nível competente em seu próprio idioma, sua reação em corrigir os outros é sim de arrogância. Elas acreditam, mesmo que não tenham consciência disto, que exista um português correto, uma língua melhor que as torna, consequentemente, melhores  do que aqueles que não a conhecem. E isso lhes dá o direito de debochar delas. Só para aliviar o stress.
Vim de uma família que não tinha livros. Meu pai trabalhou na lavoura ainda aos 8 anos. Minha mãe começou a vender doces na porta de fábricas aos 10 anos. Eles foram alfabetizados, mas tiveram que deixar a escola. Ainda aprenderam muitas coisas pela persistência, porém muitos não têm essa sorte. Essas crianças que trabalham duro desde antes de completar sua primeira década de vida têm peleumonia e outras muitas doenças que alguns doutorezinhos nem suspeitam. O erro maior não é a prosódia, doutores, de algumas palavras. Não é a concordância verbal ou nominal. O erro maior que a sociedade comete todos os dias é condenar seu povo ao não lhe dar uma educação digna. E vamos continuar condenados à nossa realidade social desigual e violenta enquanto não compreendermos isso. Pois concordo com Brecht: o pior analfabeto não é o que não sabe ler ou falar - é o analfabeto político.


terça-feira, 26 de julho de 2016

Vozes de retratos

Quando eu era criança, não ouvia falar do dia dos avós. Tenho a impressão que ser avô ou avó hoje em dia tem outro estatuto. Contraditoriamente me parece algo mais divertido ou mais árduo: no primeiro caso, para aqueles que, perdida a susidez do ser avô ou avó, podem se divertir com seus netos, brincar com eles; no segundo caso, perdida a responsabilidade de muitos pais, estes avós se tornam pais de seus netos, educando e até provendo essas crianças. Às vezes também me pergunto se não é uma sacada de marketing para criar mais um "dia de..." e vender alguma coisa.
Mas o tal "dia de..." me fez pensar nos meus avós, já falecidos. Hoje de manhã, eu olhei o retrato da velha Júlia que fica na minha sala, e tive aquela conversa silenciosa que travamos quase todos os dias. Júlia era também minha mãe, ela morava conosco quando eu era criança. Eu contemplo o retrato dos meus avós maternos, e sinto como se Júlia me olhasse. Às vezes é um olhar de consolo, às vezes de reprovação quando reclamo da minha vida fácil (perto das grandes dificuldades que ela teve que enfrentar). Ao seu lado está o meu avô, seu Zé Mandioca. Era assim conhecido porque sua família habitava um grande mandiocal. Provavelmente, se perguntassem por ali pelo sr. José Francisco de Assis, ninguém saberia de quem se tratava. Mas o Zé Mandioca todos conheciam. Com ele converso menos. A verdade é que ele e a velha Júlia já eram separados quando nasci. E ela não fazia nenhuma questão de esconder o porquê: não bastasse o adultério (seu Zé Mandioca era fogo!!!), a falta de diligência no trabalho e de controle com o dinheiro criavam muitos conflitos. O engraçado é que depois de décadas de separação, de vez em quando ele visitava minha avó com esperanças de reconciliação. Que eram rapidamente destruídas pelo comportamento reativo da D. Júlia. Mesmo assim, ele ficava lá em casa por uns dias, caminhando no quintal com as mãos para trás, como era seu hábito, implicando com nossos passeios de bicicleta (que minha mãe pacientemente explicava que não eram perigosos, como ele insistia)...
Meu avô paterno foi mais presente na minha infância, o vô Deco. Infelizmente, a mãe do meu pai faleceu antes de eu nascer, a vó Nalva. Seu Deco conservou sua foto na parede por toda a vida e jamais se casou novamente. Uma história novelesca envolve o início deste casal: quando jovens, meu bisavô, pai de Nalva, era contra o casamento. Astutamente, Deco e Nalva fizeram um plano: ele iria "roubar a moça", ou seja, forjar um rapto, para que eles fossem "forçados" a se casar. A regra era clara: roubou a moça, tem que casar. Nalva, como mocinha honesta, pediu abrigo na casa de uma jovem tia que apoiava o romance. No dia seguinte, sem saberem que os jovens tinham passado a noite na casa da tal tia e que Nalva não tinha perdido nenhum minúsculo pedaço de seu corpo e pureza, obrigaram Deco e Nalva ao casamento. Tudo o que eles queriam.
Mas nem tudo foi romantismo na vida de Deco e Nalva: 14 filhos, 10 vingaram na vida pobre da roça. Nalva morreu antes dos 50 anos, era hipertensa e foi pega por um boi bravo no pasto. Qual a exata causa mortis nunca souberam me explicar bem. Deco ficou viúvo por mais de 30 anos. Morava em uma casa de fundo em Caçapava, seu cantinho ideal. No fim da vida, já debilitado, hesitou muito em morar com os filhos: adorava seu cantinho. Sempre que chegávamos lá, ele fazia café para nós, com um bom queijinho minas e às vezes, uma "coiada de doce". Gostava também de comer queijo minas com banana nanica.
Deco gostava muito de caminhar e não tinha a menor paciência para esperar ônibus. Aos domingos, ia a pé ao mercadão; às vezes, no caminho de volta, parava em nossa casa e ficava para o almoço. No Dia dos Pais, o churrasco no quintal do vô Deco era sagrado. Toda a família reunida, a carne na churrasqueira improvisada, a maionese da tia Rê, aquela primaiada brincando, os tios se jogando na cerveja e sempre no fim da festa os bêbados começavam a chorar de saudades da vó Nalva. Ô tempo bom, dá uma saudade de doer.
Foi o vô Deco que me ensinou a perder medo de velório e enterro. Um dia ele me olhou no olho e falou: "Fia, não precisa ter medo de gente morta. Eu tenho medo é dos vivos". Sábio vô Deco! Morreu do jeito que desejava: em sua casa, deitado em sua cama, com minha tia Cida, que colocou uma vela em sua mão e rezou com ele, como ele  tinha expressado ser seu desejo na hora da morte. Vida e morte, no fim das contas, lhes foram generosas.
Hoje só escuto as vozes dos meus avós quando olho fotos que tenho deles, que me trazem tantas lembranças boas. Não me mimavam, não me davam presentes... Mas me davam algo melhor: exemplos de coragem, força, resiliência. Eu me sinto muito afortunada por ter convivido com eles, e da memória ainda me permitir ouvir suas vozes quando contemplo seus retratos.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Entregar-se sem palavras

Já escrevi diversos posts neste blog sobre a minha relação com as palavras, com os livros, com a literatura... Mas pouco escrevi sobre meu encontro com uma forma de arte que me obriga a abandonar as palavras, o pensamento e deixar com que o corpo se expresse sozinho: a dança.
Cresci em uma casa com pouca música e nenhuma dança. Meus pais não dançavam, embora hoje eu sei que minha mãe sempre achou a dança de salão a coisa mais linda! Não se brincava o carnaval (fui ao meu primeiro baile de carnaval, com a família de uma amiga, aos 14 anos), não se dançava em festas nem em rituais - éramos católicos e rezávamos comportadamente com palavras santas, as divindades completamente vestidas e com expressões neutras.
Aprendi a ignorar o corpo, sobretudo na adolescência, em que o julgava feio, desarmônico, fonte do pecado e da dor. Foi um processo longo esse em que, reconhecendo-me, reconheci meu corpo como parte de mim, fonte de agilidade, beleza, alegria e prazer. E a dança foi muito, muito importante neste processo.
A primeira forma de dança que experimentei foi o forró. Eu tinha acabado de ingressar na universidade e o forró universitário estava começando a crescer no estado de São Paulo. Fui com um grupo de amigos para ouvir a música, pois eu dizia a todo momento: não sei dançar. E foi isso que eu disse para o primeiro cavalheiro que me pediu uma dança. E ele gentilmente me respondeu: "Não precisa saber, basta dançar". Uma lição maravilhosa sobre a dança: às vezes queremos saber, queremos dominar técnicas e esquecemos de dançar, de nos deixar conduzir pela música, de deixar o corpo se expressar livremente. E naquela noite me deixei conduzir pela música e pelos vários cavalheiros que me pediram uma dança. Ao final de cada uma, um agradecimento feliz. Alguns, mais gentis, davam beijos leves nas mãos das damas com quem dançavam.
Até hoje danço forró, e estou começando minha história com o samba de gafieira, e gosto demais da energia da dança de salão. No geral, há uma naturalidade e uma gentileza ao tocar o corpo do outro, há uma gratidão pelas pessoas com quem se dança.
A segunda forma de dança que experimentei e se tornou uma paixão eterna é a dança do ventre. Esta significa muito na minha trajetória de reconhecimento do meu corpo, sobretudo na sua harmonia e feminilidade. E também na superação de preconceitos. A chamada dança do ventre, nome ocidental dado a uma estilização das danças folclóricas dos povos árabes, ainda é muito mal interpretada pelo ocidente, que a vê, muitas vezes, apenas como um instrumento para seduzir homens. Uma visão muito restrita de uma tradição milenar.

Com a minha família de dança, no espetáculo "As quatro estações", dezembro de 2014.


Em 2005, conheci Daniele Camargo, então uma aluna do curso de Educação Física que dava aulas de dança do ventre dentro da universidade. Eu me inscrevi, mas não fazia ideia ainda do que era a dança do ventre. Dani me ensinou, como a tantas alunas que teve e tem, que a dança do ventre estava longe da vulgaridade que lhe atribuíam. Ensinou-nos a fazer movimentos com o corpo, mas dentro dos nossos limites e com todo respeito ao nosso estilo pessoal de dançar. Ela nos encorajava a nos apresentar mesmo sem sermos bailarinas profissionais, e a nos alegramos com essa conquista, e com a própria festa que deve ser a convivência das mulheres em torno da dança.

Espetáculo "As quatro estações", dezembro de 2014.


A dança do ventre me encorajou muito. Ela me remete a culturas milenares em que a mulher e seu corpo eram divinizadas; faz-me mergulhar nesse eterno feminino que me empodera.  E talvez as outras bailarinas nem se deem conta, mas ao se apresentar com a dança do ventre, elas podem mostrar a todos que seu corpo é mais seu. Independe de padrões de beleza, de fronteiras, de qualquer coisa.
A dança para mim é uma forma de linguagem, de alegria, de encontro. Mais que isso: dança é entrega.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

É tudo que me resta

Uma nuvem cinza cresceu e tomou o país e o dia. Vejo os que vociferam jaulas e gaiolas onde querem aprisionar meu pensamento, minhas palavras, minha vontade de lutar. Ouço insanos pedindo canhões nas ruas, os loucos que clamam a paz por meio de armas. E tudo me entristece. Uma tristeza fina e gelada como uma chuva de inverno. Estamos longe do inverno, mas o verão parece ter se despedido antes do tempo. Antes de ver as esperanças todas pisadas e despetaladas no chão. A tarde cinzenta parece anoitecer tudo e me pergunto, como Drummond, se havemos de amanhecer.
Mas a chuva torrencial chegou tamborilando os telhados carros janelas e tudo o mais do caminho ou espaço. E em seu som de ruído líquido incontido eu ouvia: fica em paz, nega, não adianta você querer dar uma de desanimadinha. Você não nasceu pra isso, sacou? Pega a sua raiva da ignorância, do machismo, do racismo, sua indignação por todas as violências veladas e re-veladas ou reveladas e vai escrever. É tudo o que te resta.
Chuva sábia. Depois da bofetada, ficou mansa. Eu também. Continuei caminhando ensopada, a calma se apoderando de mim. E aqui estou de roupa seca, mas a alma ainda úmida. E entre o cinza das nuvens, uma fresta minúscula de céu luminoso timidamente se mostra.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Minha igrejinha azul

Tempos difíceis requerem versos, muita dança, muita amizade e um pouco de vinho (ou uma das maravilhosas caipirinhas da Regina Alves)... Difícil é pensar na vida sem arte, ou sem a memória das coisas mais felizes. Nos momentos em que tudo me parece perdido, eu olho esse céu azul de outono, macio de quase se pegar entre os dedos, e ele parece me dizer que me acalme, pois há um travesseiro onde eu posso me recostar.
E às vezes o tal do Facebook (aquele que me faz crer menos na humanidade e pedir "abduzam-me, por favor") me traz uma pessoa há muito não vista, ou um momento do passado muito amado. E ontem me deparei com um pedaço da minha infância. Meu primo Zé Mauro postou uma foto da antiga igreja de Santo Antônio, na Vila Antônio Augusto, em Caçapava.



Era linda... Simples e linda como minha casa de infância. Aliás, era também minha casa. Não apenas para rezar. Éramos crianças: brincávamos durante missas e novenas. Sonhávamos entre uma leitura e outra. Eu, principalmente, nas manhãs de outono, quando uma luz muito especial entrava pelas janelas longas e verticais da igreja. As paredes eram azuis, e essa luz as tornava celestes, parecia que os anjos do altar voavam por elas. No altar, havia também uma imagem grande de Nossa Senhora das Graças, num oratório alto com fitas coloridas, que eram fielmente beijadas. E quando eu alisava as fitas de cetim colorido, olhava aquelas mãos de fada estendidas para mim, aqueles olhos tão doces quanto os da minha mãe. Como não ter certeza da graça com toda aquela luz? Eu preferia aquela igrejinha à rica matriz, com suas sérias paredes marrons e douradas, aquele altar distante com aquela grade... Não, ali na igrejinha do bairro eu estava mais perto do céu, eu podia mergulhar no azul...
Ali também havia missas só para crianças, nas quais brilhava uma exímia contadora de histórias: Heloísa. Seu filho fazia desenhos ilustrando passagens bíblicas que eram projetadas, enquanto ela narrava as coisas mais fabulosas: o mar que se abria ao movimento do cajado de Moisés, a água que se tornava vinho aos olhos de Jesus, Lázaro que ressurgia do túmulo por sua fé... A voz de Heloísa ecoa na minha lembrança e sua figura maternal me abraça. Ela era também minha vizinha, e como todas as vizinhas, cuidava de todas as crianças da rua. Entrávamos em sua casa e flagrávamos Richard fazendo os desenhos ou tocando seu violão. Ela nos oferecia pipocas.
Foi também na Igreja de Santo Antônio que tive minhas primeiras experiências, digamos assim, públicas. Foi ali que me deram um microfone para falar e cantar em público pela primeira vez, quando eu tinha (pasmem!) apenas 6 anos. Era dia dos pais e eu fui incumbida dessa missão. Tremi quando errei o texto, mas cantei direitinho. Vi meu pai tirar o lenço do bolso, acometido de uma súbita coceira nos olhos. Chorando? Não!!! Naquela época, homens não choravam, muito menos em público.
Recostei-me na maciez de todas estas lembranças, e lamentei mais uma vez que essa Igreja foi demolida, para dar lugar a um templo três vezes maior, cheio de granito cinza, modernoso e muito impessoal, onde fui proibida de acender uma vela da última vez em que lá estive. O padre também tinha proibido a famosa quermesse de Santo Antônio, outro deleite da minha infância. Quase perguntei se o padre não ia proibir o povo de olhar e ouvir, porque isso também gera muitas tentações. Preferi não criar mais polêmicas e fui embora. Triste. Não voltei mais.
Lembro-me quando minha mãe me contou que a igreja seria demolida. Eu disse, brincando seriamente: como assim? E ninguém me consultou? Não, ninguém me consultou. Ninguém sequer se lembraria dessa menina que descansava seus olhos no azul. Ela foi demolida há anos. Entre os escombros, encontraram um pedaço do meu coração.