segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Distraídos venceremos

Nesta semana que passou, fui à defesa de tese do meu colega Ricardo Gessner, que em seu doutorado fez uma bela pesquisa sobre Paulo Leminski. Qualquer um que fale da poesia me interessa, a poesia é o sal ou o bálsamo para minhas feridas, é minha cachaça, meu feijão.
Ricardo e seus arguidores disseram muitas coisas interessantes, mas uma das frases do recente doutor que me encheu de entusiasmo foi quando comentou o título do livro Distraídos venceremos: “Distrair vem do latim distraere, que significa ‘levar por outros caminhos’”.
Lembrei de Guimarães Rosa, que dizia que um dicionário era já um livro de poemas, pois na etimologia de muitas palavras havia metáforas incríveis. Como eu já disse em outras crônicas deste blog, eu adoro a distração. E nessa explicação etimológica me valho: quando me distraio, vou por outros caminhos. Saio do lugar onde estou (às vezes contra a minha vontade) e vou por onde a alma precisa. Eu posso estar andando na rua em direção ao banco, ao correio, à escola, aparentemente toda séria nos meus afazeres. E a verdade é que não estou na rua, mas no vento: presto atenção mesmo é para onde o vento sopra, se leve e delicado ou brusco; às vezes caminho de olhos fechados para sentí-lo exclusivamente, se passo por uma praça ou algum espaço onde não serei atropelada. Eu me interesso por pessoas desconhecidas: invento-lhes destinos a partir do seu jeito de caminhar, suas roupas, suas expressões de riso ou desgosto; se a viagem é mais longa, eu crio enredos mais completos.

Ainda não li Distraídos venceremos por completo, mas esse título, para mim, já é todo um poema! Pois a distração tem sido minha arma. Só assim venceremos – desligando-nos de uma realidade que nos esmaga e alterando o foco. Escolhendo outros caminhos.

***

ADMINIMISTÉRIO

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

(Paulo Leminski, Distraídos Venceremos)

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Tá lá o corpo estendido no chão

Há dias em que tenho medo... Muito medo! Talvez meus poucos, seletos leitores se perguntarão: estará Lia tendo algum surto paranoico? Imagina-se perseguida pela máfia chinesa? Leu tantas histórias sobre vampiros que vê mortos-vivos no jardim? Ora, direis, ver mortos-vivos... Certo perdeste o senso, parodiando o imortal Bilac...
Bom seria se fosse apenas um surto paranoico, mas meu medo é de algo bem real: temo ler as notícias do dia. Aquele ritual que ficou no passado, de abrir o jornal de manhã. Ou, mais modernamente, de abrir os portais virtuais de notícias no começo do dia. Ou a qualquer momento do dia. Sinto uma leve taquicardia ao imaginar qual será o próximo absurdo da política nacional, o próximo direito a ser pisoteado ou a próxima carnificina a ser lamentada.
Algo que me intriga no mundo são os indiferentes. Sabe aquele samba excelente do João Bosco? Tá lá o corpo estendido no chão. E ninguém para sua vida por isso: o bar lota, a baiana vende pastel, camelô vende anel, tem até discurso para vereador, que discursos políticos sobre cadáveres não é novidade para ninguém... E depois todo mundo vai embora, pensando na mulher ou no time.
E o corpo continua lá, estendido no chão. Talvez uma representação bastante fidedigna do nosso momento: vemos a agonia de um estado democrático recém-nascido que não chegou a vingar. Uma jovem democracia que lenta e dificilmente caminhava para estabelecer algumas bases e que de repente parou. Mas continuamos indiferentes. E quando os passos para trás começaram, tomamos um susto. Mas continuamos indiferentes. Enquanto isso, alguns vociferam contra exposições de arte ou contra uma filósofa em visita ao país. E leio hoje no portal da BBC que há juízes brasileiros (aqueles com gordos salários e auxílio moradia de 4 mil reais por mês) que têm duas folgas semanais e férias de 60 dias, e, no do jornal Estado de São Paulo que, segundo o Banco Mundial, o Brasil deve cortar as universidades gratuitas. Mas, para não pensar em nada disso, pode-se ler a seguinte notícia no portal da revista Veja: a televisão já ocupa em média 6 horas do dia dos brasileiros.

E o corpo tá lá, estendido no chão. E um silêncio servindo de amém.