quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Literatura, afeto e acolhimento

Quando digo que histórias têm poder, que livros transformam a vida das pessoas, muita gente acha que isso é papo de escritora e professora de literatura. Que não é assim para todo mundo, só para algumas pessoas (especiais?). Pois eu insisto que não! Toda vez que eu levo livros e histórias para os mais variados lugares, eu vejo a literatura mexendo nas memórias, sentimentos e pensamentos de qualquer um!
E foi assim segunda-feira, dia 11/11, dia da entrega dos exemplares de Janelas Abertas para as detentas participantes do Projeto Travessia, na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) – e eu ainda estou assimilando tudo o que eu aprendi nesse encontro. Sim, é ilusão achar que nós, professores, sempre ensinamos. Ou que voluntários sempre ajudam. Às vezes somos nós os aprendizes, os ajudados.
Ao chegarmos, um primeiro aprendizado: só se entra no presídio com a roupa do corpo. Até seu documento fica lá fora. E nós, voluntários, sabíamos que dali a algumas horas, pegaríamos nossas bolsas, documentos e iríamos embora. E ainda estou pensando na sensação das detentas de deixar a vida lá fora. Os documentos. A identidade. Os sonhos. Ao som de cada porta pesada que se fecha atrás de nós sem a possibilidade de abrimos e voltarmos.
Mas um segundo aprendizado se sobrepôs ao primeiro: ainda existe vida ali dentro. Quando chegamos à sala de aula em que faríamos a mediação de leitura, algumas mulheres conversavam, outras aguardavam com olhar cansado, e a professora Vima abraçou uma a uma, e eu a segui, me apresentando individualmente a cada uma delas. Fiquei muito tocada com o afeto de toda a equipe de voluntárias com as leitoras – é assim que se referem a elas, não como infratoras, meliantes, criminosas. Ali, naquele espaço de algumas horas, somos todas leitoras, simplesmente compartilhando nossas emoções e reflexões diante de um texto.




E isso foi o mais bonito de tudo! Relatei um pouco do meu percurso, menos como “a escritora” e mais como a menina que morou nos livros nos momentos mais difíceis de sua vida, e que conseguiu sair deles e voltar para a realidade com um pouco mais de coragem para enfrentar um mundo quase sempre cruel e difícil para as mulheres. E como escrever foi minha forma de tentar compreender, de me reinventar, de existir e resistir. Li trechos do livro acompanhados com muita atenção, e depois as leitoras compartilharam suas interpretações.
Houve muito envolvimento da parte delas, e várias ficaram um pouco depois de terminada a seção de leitura para conversar comigo. Duas delas me marcaram muito. Míriam, uma angolana que contou um pouco de sua história e me disse, antes de ir embora: “Eu gosto demais – disse apontando o livro. – Depois que eu comecei a ler as histórias dos livros, eu me sinto com mais coragem para olhar para a minha própria história”. E Natalie, a última das leitoras com quem conversei antes de ir embora, que nos disse, com lágrimas nos olhos, essas palavras inesquecíveis: “Vocês não têm ideia do bem que fazem para nós. Eu digo pros meus filhos: olha só, eu tenho professoras catedráticas, de grandes universidades! E vocês vem aqui, quando ninguém liga pra nós. Vocês fazem a gente se sentir gente! O sistema joga a gente no lixo, mas vocês dão a mão e acolhem”.
Depois dessas falas, o que dizer? Não há palavras, só abraço e agradecimento por elas terem nos mostrado o que já pressentíamos: que nosso trabalho com a literatura precisa exceder as paredes das universidades, os artigos de crítica literária e os congressos, para resgatar sua dimensão mais humana, afetiva e transformadora.
Elas voltaram para suas celas, algumas para o trabalho, com um livro nas mãos. Quando falamos que os livros eram delas, que não precisariam ser devolvidos, elas ficaram muito felizes. Elas se sentiram “gente” quando eu falei que os livros não eram uma doação minha, mas de muitas pessoas, movidas por uma campanha que eu tinha feito nas redes sociais. Então esse texto também é para compartilhar com vocês essa felicidade e agradecer nominalmente a todas as pessoas que fizeram essas mulheres, “jogadas no lixo pelo sistema”, se sentirem mais humanas. Nosso muito obrigada a Lígia Paoletti, Diogo Avelino, Fabiana Tonin, Inês Fidalgo, Erika Anne, Evelise Amgarten, Talitta Silva, Martina Marana, Jussara Favretto, Jô Alvarado, Carolina Duarte, Carolina Marcondes, Cecília Sposito, Thaís Sposito Gonçalves, Natália Soave, Adriana Galvão e Mariana Content. Agradeço também àqueles que entraram em contato com intenção de fazer sua doação depois que já tínhamos atingido a meta desse ciclo, e peço a vocês que nos aguardem – ainda há muitos livros, muita leitura e vida a serem compartilhados. Contamos com vocês!