terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O último dia do ano

"O último dia do ano/ Não é o último dia do tempo". Assim começa um poema de Drummond. Desejamos - no fundo, não sabemos - que não seja o último dia. Que haja mais 365 dias, novinhos, prontos para serem preenchidos, no ano que começa daqui a algumas horas. Sabemos também que nada mudará miraculosamente. Mas não resistimos a esse chamado da esperança coletiva: a de que este ano tão duro está acabando, quiçá no próximo podemos recomeçar, senão tudo, algumas coisas, e errar menos, dançar mais, dormir melhor, rir com gosto e com frequência...
Então também eu não resisto e me entrego às reflexões típicas da data. O que fiz deste 2019? Como me defendi do embrutecimento generalizado? O que posso comemorar? Olha, apesar de tudo, não foi pouco. Foi um ano de muitas lágrimas, confesso, mas houve também muitos momentos felizes. Se eu fosse descrever todos, o texto ficaria longo demais, mas resumo algumas coisas que foram realmente importantes: escrevi dois livros ficcionais (um deles já encontrou sua casa editora, em breve vocês saberão, sou péssima em guardar segredos rs), metade da minha tese e dois artigos, um deles já publicado; fiz minha primeira viagem ao Oriente e conheci o Egito; conheci muitas pessoas interessantes e fiz novos amigos; voltei para as aulas de dança e comecei a aprender a dançar tango; visitei pela primeira vez um presídio, onde fiz uma mediação de leitura; conheci novas autoras maravilhosas da literatura brasileira, como a Micheliny Verunschk, a Juliana Leite e a Aline Bei; fiz um curso de roteiro e escrevi meu primeiro roteiro; fiz um passeio de balão pela primeira vez...
Olha, olhando para esta lista resumida, acho que 2019 foi pleno de dores, mas também de aventuras! Eu tenho muito a agradecer ao Divino e a todas as pessoas que trouxeram ao meu 2019 mais abraços, mais leveza, mais poesia, mais música, mais dança, mais amor... E que venha com mais em 2020! Um ano luminoso para todos nós! E que saibamos comemorar o fato de estarmos vivos! Para terminar com palavras de Drummond, havemos de amanhecer:

"Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer".
(Carlos Drummond de Andrade, "O último dia do ano")


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Literatura, afeto e acolhimento

Quando digo que histórias têm poder, que livros transformam a vida das pessoas, muita gente acha que isso é papo de escritora e professora de literatura. Que não é assim para todo mundo, só para algumas pessoas (especiais?). Pois eu insisto que não! Toda vez que eu levo livros e histórias para os mais variados lugares, eu vejo a literatura mexendo nas memórias, sentimentos e pensamentos de qualquer um!
E foi assim segunda-feira, dia 11/11, dia da entrega dos exemplares de Janelas Abertas para as detentas participantes do Projeto Travessia, na Penitenciária Feminina da Capital (PFC) – e eu ainda estou assimilando tudo o que eu aprendi nesse encontro. Sim, é ilusão achar que nós, professores, sempre ensinamos. Ou que voluntários sempre ajudam. Às vezes somos nós os aprendizes, os ajudados.
Ao chegarmos, um primeiro aprendizado: só se entra no presídio com a roupa do corpo. Até seu documento fica lá fora. E nós, voluntários, sabíamos que dali a algumas horas, pegaríamos nossas bolsas, documentos e iríamos embora. E ainda estou pensando na sensação das detentas de deixar a vida lá fora. Os documentos. A identidade. Os sonhos. Ao som de cada porta pesada que se fecha atrás de nós sem a possibilidade de abrimos e voltarmos.
Mas um segundo aprendizado se sobrepôs ao primeiro: ainda existe vida ali dentro. Quando chegamos à sala de aula em que faríamos a mediação de leitura, algumas mulheres conversavam, outras aguardavam com olhar cansado, e a professora Vima abraçou uma a uma, e eu a segui, me apresentando individualmente a cada uma delas. Fiquei muito tocada com o afeto de toda a equipe de voluntárias com as leitoras – é assim que se referem a elas, não como infratoras, meliantes, criminosas. Ali, naquele espaço de algumas horas, somos todas leitoras, simplesmente compartilhando nossas emoções e reflexões diante de um texto.




E isso foi o mais bonito de tudo! Relatei um pouco do meu percurso, menos como “a escritora” e mais como a menina que morou nos livros nos momentos mais difíceis de sua vida, e que conseguiu sair deles e voltar para a realidade com um pouco mais de coragem para enfrentar um mundo quase sempre cruel e difícil para as mulheres. E como escrever foi minha forma de tentar compreender, de me reinventar, de existir e resistir. Li trechos do livro acompanhados com muita atenção, e depois as leitoras compartilharam suas interpretações.
Houve muito envolvimento da parte delas, e várias ficaram um pouco depois de terminada a seção de leitura para conversar comigo. Duas delas me marcaram muito. Míriam, uma angolana que contou um pouco de sua história e me disse, antes de ir embora: “Eu gosto demais – disse apontando o livro. – Depois que eu comecei a ler as histórias dos livros, eu me sinto com mais coragem para olhar para a minha própria história”. E Natalie, a última das leitoras com quem conversei antes de ir embora, que nos disse, com lágrimas nos olhos, essas palavras inesquecíveis: “Vocês não têm ideia do bem que fazem para nós. Eu digo pros meus filhos: olha só, eu tenho professoras catedráticas, de grandes universidades! E vocês vem aqui, quando ninguém liga pra nós. Vocês fazem a gente se sentir gente! O sistema joga a gente no lixo, mas vocês dão a mão e acolhem”.
Depois dessas falas, o que dizer? Não há palavras, só abraço e agradecimento por elas terem nos mostrado o que já pressentíamos: que nosso trabalho com a literatura precisa exceder as paredes das universidades, os artigos de crítica literária e os congressos, para resgatar sua dimensão mais humana, afetiva e transformadora.
Elas voltaram para suas celas, algumas para o trabalho, com um livro nas mãos. Quando falamos que os livros eram delas, que não precisariam ser devolvidos, elas ficaram muito felizes. Elas se sentiram “gente” quando eu falei que os livros não eram uma doação minha, mas de muitas pessoas, movidas por uma campanha que eu tinha feito nas redes sociais. Então esse texto também é para compartilhar com vocês essa felicidade e agradecer nominalmente a todas as pessoas que fizeram essas mulheres, “jogadas no lixo pelo sistema”, se sentirem mais humanas. Nosso muito obrigada a Lígia Paoletti, Diogo Avelino, Fabiana Tonin, Inês Fidalgo, Erika Anne, Evelise Amgarten, Talitta Silva, Martina Marana, Jussara Favretto, Jô Alvarado, Carolina Duarte, Carolina Marcondes, Cecília Sposito, Thaís Sposito Gonçalves, Natália Soave, Adriana Galvão e Mariana Content. Agradeço também àqueles que entraram em contato com intenção de fazer sua doação depois que já tínhamos atingido a meta desse ciclo, e peço a vocês que nos aguardem – ainda há muitos livros, muita leitura e vida a serem compartilhados. Contamos com vocês!

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Viagem ao redor do meu gramado

Dia desses estava em uma mesa com amigos (existe lugar melhor?), e entre vinhos e conversas, surgiu o assunto sobre viagens. Assunto corriqueiro hoje em dia, pauta aparentemente neutra (em tempos tão intolerantes) para uma conversa casual, tal qual a culinária, cortes de cabelo e esmaltes.
Mas não é que o assunto deu polêmica? É que eu falava risonhamente da minha paixão por viagens ser desproporcional ao ânimo do meu marido pelas mesmas viagens, que quando não é tão inferior ao meu, é inexistente. Perguntei a ele para onde ele queria viajar este ano: escolha qualquer lugar, eu disse, cheia de sonhos: Turquia, Islândia, China... Ele me disse: quero ficar no meu quintal, vendo a grama crescer. Uma releitura de Viagem ao redor do meu quarto, mais aberta, sem paredes?
Diante da reações de “Não acredito!”, “Eu daria tudo para receber uma proposta dessas!”, um dos meus amigos confessou que também não gostava de viajar. Que achava cansativo e chato fazer malas, enfrentar quilômetros, filas e outros contratempos. Que, no fundo, irritava-se com esse imperativo de ter que viajar nas férias. Que isso não passava de mais uma armadilha do capitalismo, a convencer as pessoas de que elas só serão felizes se viajarem, e, portanto, consumirem os enlatados do turismo. É realmente uma análise inteligente, porque viagens se tornaram também um produto que se vende como sinônimo de aventura e felicidade. Quando muitos dos enlatados do turismo não proporcionam nenhuma das duas coisas, necessariamente. E a felicidade pode estar no nosso diminuto pedaço de grama (ou de tapete, ou de sofá)...





Tudo bem, desculpa, podem ficar no seu gramado, eu disse, rindo... Eu até concordo com muitas coisas que eles disseram. Mas, no fundo, eu continuo apaixonada por viajar. Minhas malas tem um poder mágico: quando ficam paradas, começam a emitir um som baixo, que só eu percebo: suas rodas começam a girar sozinhas, me avisando que é hora de sair de novo. A imagem da estrada acompanha meus poemas e sonhos, me encantando com a possibilidade de conhecer algo novo que ficará na minha memória, mais um desenho no interessante mosaico que eu construo da vida.
Em todas as viagens que fiz (não foram muitas, mas tão importantes), houve cansaços e imprevistos. E o mais importante de tudo, houve encontros, pessoas que cruzaram meu caminho (às vezes por poucas horas, às vezes por alguns dias ou semanas) e trouxeram algum significado diferente àquelas paisagens, que deixaram de ser uma propaganda de agência de turismo ou um cartão-postal retocado para ser a minha experiência pessoal daqueles lugares. Porque a maior armadilha do capitalismo não é nos vender viagens (ou qualquer outra coisa), mas querer nos convencer de que estão nos vendendo uma experiência. E isso é algo que ninguém pode nos vender: a experiência é humana, única e irredutível a moedas, códigos de barra e cartões de crédito. E talvez por isso a viagem ao redor do próprio gramado possa ser, para alguns, melhor do que Cancun ou Paris...
     

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pão-Poesia (II) ou Felicidade Repentina


Também a vida é feita de felicidades repentinas. Acordamos, saímos à rua e não sabemos o que nos aguarda depois daquela esquina. E talvez a manhã, generosa, traga-nos cheiro de pão fresco. Uma floricultura com suas flores regadas. Ou uma pessoa querida há muito não vista.
Para mim, isso também é poema. A vida no seu imprevisto, mesmo que pequeno, mesmo que discreto: algo interessante que capture o meu olhar, me suspenda no tempo, me faça fugir por alguns segundos da mesmice que sufoca.
E quando essa felicidade repentina traz literalmente poemas e pessoas (e pessoas que são quase poemas)? Foi isso que aconteceu nessa semana. Eu estava na universidade, dentro da biblioteca, fazendo aquela balbúrdia (escrevendo tese!) e recebi um convite lindo para almoçar com amigas queridíssimas, Mariana e Milena. Essa eu não via desde o ano passado, ela não mora em Campinas e eu fiquei feliz demais com a surpresa.


Versos para se devorar com deleite. E o melhor 
é que você pode comê-los sucessivas vezes!

Fui à casa de Mariana. Abraços. Como você está? Barrocas, enlouquecidas (foram os adjetivos mais usados). Cozinhamos juntas, enquanto compartilhávamos novidades e ideias e confissões, num ritual muito singular e muito feminino. Músicas bonitas para acalmar o coração. Maçã com limão cravo e sal, novidade de Milena. Sabores novos, afetos conhecidos.
E depois de comer muito e bem, nós três nos jogamos no tapete azul da sala, rodeado pelos muitos livros que Mariana mantém ali, ao alcance dos olhos e das mãos, para que seus hóspedes se deixem ficar (como se já não fosse suficiente sua presença para não querermos ir embora e sim morar naquele tapete). Lemos poemas de Hilda Hilsti e Sophia de Mello Breyner Andresen. Sobremesa mais que maravilhosa. 5 mulheres deitadas sobre versos, cobertas de versos, vestidas de versos, saboreando-os lentamente ao ouvi-los sair das páginas e dos lábios das outras.
Foi tão espontâneo e bonito que saí de lá não só com a barriga, mas a alma cheia! Se essa não for a função da poesia, não sei pra que serve, não!

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Pão-poesia

Tenho dançado todas as quintas-feiras. Se o leitor releu o título do texto, não estranhe a frase. Dança é poema e poema é dança: movimento que se recusa a ser a linguagem – seja no verbo ou no corpo – comum, mecanizada, de todo dia. Então que esse encontro marcado com a dança, todas as quintas - um privilégio que me dou na hora do almoço, incluindo no dia um outro tipo de alimento – tem me deixado louca para escrever. É como se eu começasse a escrever enquanto danço e, escrevendo, eu continuasse dançando.




O difícil é voltar à biblioteca. Sentar-me diante do computador e conter toda a poesia que me conduz em passadas ora largas, ora curtas, com pausas inesperadas como a iminência de um beijo, seguidas de sinuosos floreios em que pernas desenham no chão “ss” perfeitos e de giros e giros e giros que mais se assemelham ao voo curto de ave assustada. Difícil obrigar-me à imobilidade, silenciar a música que ainda mora nos músculos, encerrar toda poesia-dança no fundo de um arquivo.
Acho que não estou tendo muito sucesso, porque aqui estou eu escrevendo sobre a poesia de que preciso me despedir por ora, sabendo que, talvez, em poucos minutos, já me entrego de novo a mais um poema que me tira para dançar.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Muito além da fórmula da água

Pouca gente sabe, mas eu me tornei professora antes de completar a minha graduação, antes de ter licenciatura. Aos 19 anos, eu já estava em uma sala de aula, no período noturno, lecionando para pessoas mais velhas do que eu (e que tanto me ensinaram). Desde criança eu admirava meus bons professores e me sentia honrada com a possibilidade de me tornar um deles no futuro. Desde criança, eu gostava dos cadernos, dos livros, da lousa e do giz, levando mais a sério do que a maioria o brincar de “escolinha”. E o tempo passou, a criança cresceu, esse diminutivo desapareceu e a escola passou a ser não apenas meu local de trabalho, mas um espaço de vivências múltiplas que alimentou minhas reflexões, pesquisas, textos e afetos.
O que a educação fez por mim vai muito além dos diplomas e qualificações profissionais. Eu faço parte da primeira geração da minha família que frequentou escolas. Que não precisou pegar na enxada antes dos 10 anos. Não havia livros na casa dos meus avós. E poucos, na minha casa de infância (a Bíblia e volumes da Enciclopédia Barsa, que ainda se vendia de porta em porta). A escola me trouxe livros nos quais eu aprendi muito mais do que a fórmula da água ou a multiplicar 7 X 8... Livros que me mostraram realidades diferentes, lugares distantes, ideias diversas. E mais: a escola me trouxe pessoas que me ensinaram a pensar, a conviver, a lidar com o que eu era e com o que eu queria me tornar. A escola me permitiu reavaliar os preconceitos que eu recebi, ressignificar algumas verdades e me tornar uma pessoa melhor (e que ainda precisa melhorar muito)... Porque a ignorância, como bem disse Renato Russo, é vizinha da maldade.



Meus colegas e alunos em manifestação na Avenida Paulista, 
em defesa das escolas e universidases públicas! <3 #15M


A educação me permitiu escolher minha profissão e atuar no desenvolvimento das pessoas. Foi para isso que eu me tornei professora: para ver gente aprender, crescer, brilhar. Eu dediquei os últimos 20 anos da minha vida aos estudos, à pesquisa e à docência para isso. A coisa mais maravilhosa do mundo é ver o brilho no olho de um aluno quando ele entende um texto ou um conceito, tem uma ideia, cria um poema, um projeto, um experimento... E o que há de mais triste para mim, nesse momento, é ver a desesperança no olhar desses alunos diante das ameaças ao orçamento das escolas e universidades. É ver parte da sociedade brasileira apática diante do desmonte da educação pública. Porque isso significa condenar essas crianças e jovens ao não desenvolvimento, a permanecer, na melhor hipótese, no mesmo lugar cultural e social, sem chances de mudar, de se reinventar, de fazer algo relevante nas próprias vidas e no mundo.
Não deixemos que isso aconteça. Não deixemos que o projeto de falência da escola pública prossiga, projeto esse que tanto interessa aos grandes empresários da educação, que tem transformado a educação em mercadoria (nem sempre de qualidade) para quem quiser ou puder pagar. Defendam a escola pública, briguem por ela, exijam sua melhoria! Por favor, Brasil, nunca te pedi nada!

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A ameaça do (e ao) conhecimento

Toda vez que sou convidada para uma palestra, uma mesa, um bate-papo sobre literatura eu me sinto honrada. É uma honra para mim compartilhar a minha experiência com a literatura, tanto na pesquisa quanto na escrita ficcional ou na docência, e poder escutar e aprender com a experiência de tantas pessoas que constroem a cultura nesse país, ao longo de uma vida de muito trabalho.
Foi assim nesta semana, na mesa “Coleções literárias para a formação de leitores”, no IFSP-Pirituba. Mas a minha honra maior foi escutar. Não apenas porque Jiro Takahasi (o outro componente desta mesa onde repartimos o pão das palavras) é um editor veterano, premiado, que tem tanto a nos ensinar sobre a produção editorial no Brasil, especialmente sobre as renomadas coleções Vagalume e Para Gostar de Ler, que formaram gerações de leitores no Brasil. Mas também porque este editor afirmou, em vários momentos da sua fala, que todo o seu trabalho de décadas na área editorial só existe e faz sentido porque há leitores, citando a famosa frase de Borges: “Outros que se vangloriem dos livros que escreveram, eu me vanglorio dos leitores que tive”. E estendendo-a à atividade docente (já que Jiro também é professor), terminou sua fala agradecendo por falar de sua experiência a alunos de Letras, parodiando o escritor argentino: “Outros que se vangloriem das aulas que deram, eu me vanglorio dos alunos que tive”.
Em uma semana em que se anunciaram cortes no orçamento da educação pública e de bolsas de fomento à pesquisa, a fala de Jiro Takahashi é mais que um consolo, mas um convite à resistência. A mim, ela trouxe uma certeza: a de que toda a pesquisa na área de Linguagens e Ciências Humanas faz sentido porque há leitores e alunos que precisam dela. Falamos de coleções editoriais voltadas para um público jovem em formação, tanto em termos de leitura quanto de cidadania, e do quanto essas coleções são importantes para o contato do jovem com uma literatura que faça sentido para ele, que o represente e, ao mesmo tempo, apresente-lhe um mundo que excede as fronteiras da sua casa, da sua escola, do seu bairro, da sua cidade. Mas também falamos das limitações dessas coleções, da conflituosa relação entre educação, mercado e literatura juvenil – já que imperativos econômicos e didáticos influenciam na produção dos livros destinados a este público.
Tais conflitos se mostram presentes nos discursos políticos atuais, quando se coloca o professor como alvo de vigilância da sociedade, cerceado inclusive na escolha das leituras a serem feitas por seus alunos. Porque sabemos que a leitura foi e continua sendo vista como uma atividade perigosa, caso não seja bem orientada. Entenda-se orientação como um exercício de controle que vai desde a escolha de conteúdos que são ou não adequados à leitura e ao debate em sala de aula, até ao “monitoramento” da interpretação de textos, disfarçado sob a forma de roteiros de leitura, apostilas, nivelamento e homogeneização das avaliações de literatura e outros recursos didáticos. Assim, o risco de o jovem começar a pensar e questionar os valores que recebeu desde sempre é bem menor. Obviamente, nada disso é dito com clareza, talvez sequer pensado com clareza, mas diluído nas boas intenções de facilitar a leitura e torná-la mais útil para os jovens, bem como orientá-los moralmente. 


   
Teme-se que o jovem viaje sozinho pelas páginas dos livros, porque isso pode desviá-lo dos caminhos considerados certos – e são exatamente os desvios que trazem as surpresas que nos fazem pensar. Por isso, o conhecimento sempre foi considerado uma ameaça por aqueles que detêm verdades absolutas e que querem manter o poder a qualquer custo. É muito claro que o desmonte da educação pública e dos programas federais de fomento à pesquisa é um projeto, com motivações e implicações não apenas políticas, mas sociais e econômicas. Diante disso, mais do que nunca, temos a convicção de nosso papel enquanto pesquisadores e professores das universidades públicas: produzir conhecimento que atenda não apenas demandas imediatas (da medicina, da engenharia, da indústria), mas que desenvolva formas de questionar a própria produção de conhecimento, seus discursos, suas metodologias, seus limites e potencialidades. Só assim promoveremos uma educação de qualidade, que excederá os discursos eleitoreiros e das instituições de ensino.
Porque a leitura e a reflexão precisam exceder os limites da escola, da aula de língua portuguesa e literatura. Ao final da instigante discussão sobre as coleções literárias para a formação de leitores, um aluno nos perguntou nossa opinião sobre a crise do mercado editorial. Livrarias falindo, pequenas editoras fechando, grandes grupos editoriais em déficit. Algo que parece ser uma crise no sentido financeiro é também um sintoma de uma crise mais ampla, de valores, na qual podemos perguntar qual o valor do livro, e, especialmente, da leitura literária, ou mais amplamente, da cultura letrada, no atual contexto social. E não há como falar disso sem falar de uma educação que realmente forme leitores, que continuarão lendo para além dos anos escolares. Editoras nunca terão público suficiente em um país de analfabetos funcionais. Por isso, é preciso que elas se lembrem de seu principal foco: os leitores, seu desenvolvimento e o de uma relação especial com os livros. 

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Fly 3003


De repente surgiu aquele carro. Do nada surgiu aquele carro. Ela freou com toda a força e sentiu o cheiro do pneu queimando o asfalto. Quando o carro parou, a milímetros do outro, ela fechou os olhos, as pernas bambas, nem ouvindo o palavrão do motorista que estava atrás. Pesava-lhe o corpo. Não era apenas a descarga de adrenalina. Pesava-lhe o corpo pelas tantas noites pouco ou mal dormidas. Pesavam-lhe as pálpebras pelas lágrimas não derramadas. Pesava-lhe a alma sem asas.
Lentamente relaxou os dedos que, ato reflexo, apertavam com força o volante. Respirou fundo, os olhos ainda fechados, repetindo baixinho “Não foi nada, não foi nada”, como um mantra que lhe devolveria o domínio das pernas. Foi despertada subitamente pelo barulho das buzinas. O sinal abrira e a longa fila de veículos reclamava seu direito de seguir a vida. Ou ao menos o caminho para o trabalho, para a escola, para o banco, para qualquer instituição que lhe engoliria a vida. Ainda trêmula, ela ligou o carro, engatou a primeira marcha, colocando-se em marcha novamente na procissão urbana. “Vai passar”, pensou. Repetiu algumas vezes. Mentiras repetidas à exaustão acabam se tornando verdades, com ela haveria de dar certo.
Mas não passava. Sentia na garganta a náusea. Os dissabores de anos, engolidos a seco, o medo de perder o emprego, de não conseguir pagar as parcelas do financiamento, noites em claro pensando se teria coragem de pedir o divórcio, a indiferença da família, a angústia de não se sentir bonita apesar de todas as dietas e todas as roupas novas, tudo lhe subia do estômago, mistura acre de nervosismo, dor e frustração. O sinal vermelho. Pare. Pare com isso. Ela repetiu: vai passar.  
Mas não passava. Olhou seus olhos no retrovisor. Antes perfeitamente delineados, agora eram duas manchas horrorosas, entre o roxo e o acinzentado. Ela passou a mão pelos olhos, pelo rosto, assim que freara bruscamente para evitar o acidente, espalhando a maquiagem mecanicamente feita naquela manhã. Ela passou a mão pelo rosto novamente, com cuidado, como se as manchas sobre os olhos fossem dois hematomas, duas bofetadas da vida. A carícia leve pela pele do rosto trouxe-lhe um breve meio sorriso. Há tanto tempo ela não se acarinhava, nem em gestos nem em palavras. Demorou-se no gesto, sentindo a ponta dos dedos desenhando os lábios, o nariz adunco, os cílios, as rugas, a linha de expressão entre as sobrancelhas, escavada pelas preocupações.
Novamente o sinal verde, siga, as buzinas gritando: siga. Sempre em frente. Mas as pernas se recusaram. Ela novamente olhou seus próprios olhos no retrovisor. Há muito não se olhava nos olhos. Há muito não se encarava para não precisar reconhecer a dor, para não precisar dizer as verdades. E se olhando nos olhos ela soube – amava-se ainda. Quase tinha se perdido, mas era tempo. As buzinas continuavam, carros resfolegando como animais enraivecidos, motoristas a ultrapassavam gritando palavrões inaudíveis pelos vidros fechados, mas ela só olhos para os seus olhos, ouvidos para o silêncio que a tomava, um silêncio de compreensão.
Como se tivesse emergido de águas profundas, ela de repente ouviu o barulho ao redor. Atrás dela, um motorista manobrava, tentando ultrapassá-la, e, logo o fez, o sinal fechou novamente. O homem gritava e fazia gestos impacientes e obscenos. Como se tivesse acordado de um sono profundo, ela acompanhava com esforço seus braços enfáticos. Achou graça, era como se ele fosse um daqueles bonecos infláveis colocados na pista para sinalizar obras, movendo desengonçadamente os braços. Ela começou a rir. E de repente, seus olhos desceram e se fixaram na placa do carro: FLY 3003.
   Leu novamente, agora em voz alta, a placa do carro. Notou que as letras formavam uma palavra em inglês. E os números, curiosamente, formavam um número que continuava o mesmo ao ser lido em ambas as direções. Como se chamavam esses números? Não se lembrava. Mas sabia o que significava a palavra, significava voar. Ela sabia por causa da única viagem internacional que tinha feito. Três mil e três. Também podia ser trinta zero três. Trinta do três. Sua data de nascimento. Como era mesmo o nome desse tipo de número?
Novamente o verde tomou conta dos semáforos e ela ligou o carro, ainda pensando no nome. Paráfrase? Paranomásia? Tinha certeza de que começava com “pa”. Voar. Não podia ser “voe”? Não podia ser um convite? PALÍNDROMO! A palavra veio inteira em sua mente, em caixa alta. Era isso! Número palíndromo. Mas agora não era mais. Não era mais 3003! Era 30.03. Voe, 30.03! Era um convite, ela teve certeza agora. Um convite para as pessoas nascidas no dia 30 de março voarem. Um convite para que sua alma ganhasse asas.
Ela prosseguia na longa avenida, agora as pernas obedeciam, a respiração se controlava, as mãos firmes, mas não mais tensas no volante. Dirigia como se a longa avenida não tivesse fim, e só muito depois percebeu que perdera a saída que a faria continuar no trajeto para o trabalho. Fez o primeiro retorno que encontrou. Sim, chegaria atrasada no trabalho. Mas estranhamente, essa conclusão não a afligiu. Dirigia devagar, como se nada ou ninguém a esperasse.
Quando entrou na sala que dividia com mais três colegas, notou olhares estranhos. Passou a mão, instintivamente, pelo rosto. Era a maquiagem borrada que criava aqueles pontos de interrogação nos olhos alheios? Ou era a flama que se via em seus próprios olhos? Não quis se explicar. Não queria palavra que rompesse aquele silêncio que a abraçava, compreensivo e benfazejo. Então apenas sentou-se em sua mesa. Diante do computador ainda desligado, um origami. Ela não sabia como aquele passarinho tinha vindo parar ali, mas sabia que, mais uma vez, eram as asas de que sua alma precisava tanto, tanto...   



sexta-feira, 8 de março de 2019

Feminismo não é antônimo de machismo


Precisamos pensar nas palavras. Sempre. Nos seus silêncios e nos seus sentidos. Então a professora que sou sente a necessidade de explicar. Desculpem-me os que me acharem excessivamente didática. Às vezes não consigo evitar. E me perdoem aqueles que já estejam com os cabelos em pé de ter que ouvir isso de novo, mas é por conta daqueles que não estão carecas de saber que precisamos repetir, repetir e continuar repetindo todo ano. Cansa muito, mas prosseguimos.
Vou começar a falar sobre o feminismo dizendo o que ele não é. E com a ajuda da gramática: feminismo não é antônimo de machismo. Feminismo é o nome que se dá à luta das mulheres por igualdade de direitos e oportunidades entre os sexos. É a luta pelo fim da violência e opressão às mulheres, que afetam a todos (pois os homens também sofrem nesse processo, embora menos do que nós).
Feminismo não tem nada a ver com deixar de depilar qualquer parte do corpo. Não tem nada a ver com roupas mais ou menos curtas. Mas tem tudo a ver com a consciência de que o corpo da mulher pertence a ela e é ela quem deve decidir o que fazer com ele.
Feminismo não é ser contra o casamento, a maternidade ou papéis tradicionais que a mulher possa exercer. Mas tem tudo o ver com o entendimento de que a mulher deve ser livre para escolher se quer ser casada ou não, ser mãe ou não. É lutar para que seja garantido que seu lugar seja onde ela quiser, inclusive na cozinha, mas também nos laboratórios de pesquisa, nas salas de aula, nas instituições financeiras, nas câmaras de vereadores e deputados, nos gabinetes das prefeituras e da presidência (e não apenas como faxineira!).
Feminismo não tem nada a ver com ser contra relações heterossexuais ou contra os homens. Vivo brincando com isso, dizendo que sou contra o machismo, não contra o macho (do qual, a propósito, gosto muito!). Mas tem tudo a ver com a percepção de que os homens não são o centro do mundo e de que não é um relacionamento com um homem que define o valor de uma mulher.
Feminismo não é se vestir como homem, ficar musculosa, falar palavrões, cuspir ou fazer xixi na rua; nem ficar nua em público em qualquer protesto.
Tentei pensar no maior número possível de imagens estereotipadas, para pensarmos no quanto elas não dão conta da diversidade não apenas de mulheres, mas de homens, gays, lésbicas, travestis e transexuais que são feministas.
É preciso repetir e repetir isso nesse momento em que, mais do que antes, o feminismo tem sido atacado e depreciado, com a reafirmação de preconceitos que só impedem as pessoas, e especialmente as mulheres, de pensar no quanto são oprimidas e reagir a isso. Muitas delas se dizem, inclusive, contra o feminismo, sem estarem conscientes de que isso é ser contra a luta organizada das mulheres por suas próprias vidas. Ou elas pensam que não precisam do feminismo ou nunca tiveram nada a ver com ele, sem refletir que sem o movimento feminista, as mulheres nunca teriam conquistado o direito ao voto, ao estudo (sim, meninas começaram a frequentar escolas e universidades há bem pouco tempo, na história, e ainda não têm esse direito em muitos lugares), a um trabalho fora de casa com o mínimo de paridade salarial com os homens, e até mesmo o direito à guarda de seus próprios filhos.
Então, a única coisa que eu posso dizer é: leia, reflita, converse com pessoas que atuam pelos direitos das mulheres. Talvez muitas de nós são feministas, mas ainda não sabem.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Autorretrato


Trago um vinco entre os olhos que já faz parte da paisagem que tenho de mim. A dor, os temores, a luta sulcaram minha pele bem ali onde se encontra, segundo filosofias orientais, a consciência, a alma, o terceiro olho.
O tempo escreveu em mim alguns versos curtos, mas bonitos. Olho as marcas do meu rosto e vejo que um sorriso já está inscrito ali, tantas as vezes que apertei os olhos de amor e elevei os lábios na alegria. Olho as linhas na minha testa e posso ler nelas o espanto, a surpresa, a falta das respostas para as eternas perguntas...





O tempo escreveu em mim algumas histórias que ainda não sei contar. Há mais que cicatrizes de tombos, feridas, cataporas e cortes. Há as invisíveis, difíceis de ler, porque a gente coloca bastante maquiagem em cima. Mas sei que estão ali; que, se tocadas ainda que de leve, podem verter fel e sangue. Elas me calam, fazem-me sucumbir sem palavra que possa me salvar.
O tempo escreveu em mim algumas certezas. A de que sou humana e mulher, com todas as dores e delícias que isso me traz. A de que sou mulher e por isso vou ter que lutar sem esquiva ou cansaço pelo respeito que me foi usurpado desde séculos. Talvez daí meu medo da loucura: talvez não seja medo, seja memória. Se fui mulher em outras vidas, fui chamada louca, libertina, perdida. Conheci prisões e manicômios, e a memória da tortura nunca sai da carne. Talvez daí também minha sede de liberdade infinita, esses lábios entreabertos sempre esperando um novo e líquido amanhecer no qual eu possa caminhar.
E caminho.

20.02.2019
por ocasião dos meus 40 anos