sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pão-Poesia (II) ou Felicidade Repentina


Também a vida é feita de felicidades repentinas. Acordamos, saímos à rua e não sabemos o que nos aguarda depois daquela esquina. E talvez a manhã, generosa, traga-nos cheiro de pão fresco. Uma floricultura com suas flores regadas. Ou uma pessoa querida há muito não vista.
Para mim, isso também é poema. A vida no seu imprevisto, mesmo que pequeno, mesmo que discreto: algo interessante que capture o meu olhar, me suspenda no tempo, me faça fugir por alguns segundos da mesmice que sufoca.
E quando essa felicidade repentina traz literalmente poemas e pessoas (e pessoas que são quase poemas)? Foi isso que aconteceu nessa semana. Eu estava na universidade, dentro da biblioteca, fazendo aquela balbúrdia (escrevendo tese!) e recebi um convite lindo para almoçar com amigas queridíssimas, Mariana e Milena. Essa eu não via desde o ano passado, ela não mora em Campinas e eu fiquei feliz demais com a surpresa.


Versos para se devorar com deleite. E o melhor 
é que você pode comê-los sucessivas vezes!

Fui à casa de Mariana. Abraços. Como você está? Barrocas, enlouquecidas (foram os adjetivos mais usados). Cozinhamos juntas, enquanto compartilhávamos novidades e ideias e confissões, num ritual muito singular e muito feminino. Músicas bonitas para acalmar o coração. Maçã com limão cravo e sal, novidade de Milena. Sabores novos, afetos conhecidos.
E depois de comer muito e bem, nós três nos jogamos no tapete azul da sala, rodeado pelos muitos livros que Mariana mantém ali, ao alcance dos olhos e das mãos, para que seus hóspedes se deixem ficar (como se já não fosse suficiente sua presença para não querermos ir embora e sim morar naquele tapete). Lemos poemas de Hilda Hilsti e Sophia de Mello Breyner Andresen. Sobremesa mais que maravilhosa. 5 mulheres deitadas sobre versos, cobertas de versos, vestidas de versos, saboreando-os lentamente ao ouvi-los sair das páginas e dos lábios das outras.
Foi tão espontâneo e bonito que saí de lá não só com a barriga, mas a alma cheia! Se essa não for a função da poesia, não sei pra que serve, não!

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Pão-poesia

Tenho dançado todas as quintas-feiras. Se o leitor releu o título do texto, não estranhe a frase. Dança é poema e poema é dança: movimento que se recusa a ser a linguagem – seja no verbo ou no corpo – comum, mecanizada, de todo dia. Então que esse encontro marcado com a dança, todas as quintas - um privilégio que me dou na hora do almoço, incluindo no dia um outro tipo de alimento – tem me deixado louca para escrever. É como se eu começasse a escrever enquanto danço e, escrevendo, eu continuasse dançando.




O difícil é voltar à biblioteca. Sentar-me diante do computador e conter toda a poesia que me conduz em passadas ora largas, ora curtas, com pausas inesperadas como a iminência de um beijo, seguidas de sinuosos floreios em que pernas desenham no chão “ss” perfeitos e de giros e giros e giros que mais se assemelham ao voo curto de ave assustada. Difícil obrigar-me à imobilidade, silenciar a música que ainda mora nos músculos, encerrar toda poesia-dança no fundo de um arquivo.
Acho que não estou tendo muito sucesso, porque aqui estou eu escrevendo sobre a poesia de que preciso me despedir por ora, sabendo que, talvez, em poucos minutos, já me entrego de novo a mais um poema que me tira para dançar.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Muito além da fórmula da água

Pouca gente sabe, mas eu me tornei professora antes de completar a minha graduação, antes de ter licenciatura. Aos 19 anos, eu já estava em uma sala de aula, no período noturno, lecionando para pessoas mais velhas do que eu (e que tanto me ensinaram). Desde criança eu admirava meus bons professores e me sentia honrada com a possibilidade de me tornar um deles no futuro. Desde criança, eu gostava dos cadernos, dos livros, da lousa e do giz, levando mais a sério do que a maioria o brincar de “escolinha”. E o tempo passou, a criança cresceu, esse diminutivo desapareceu e a escola passou a ser não apenas meu local de trabalho, mas um espaço de vivências múltiplas que alimentou minhas reflexões, pesquisas, textos e afetos.
O que a educação fez por mim vai muito além dos diplomas e qualificações profissionais. Eu faço parte da primeira geração da minha família que frequentou escolas. Que não precisou pegar na enxada antes dos 10 anos. Não havia livros na casa dos meus avós. E poucos, na minha casa de infância (a Bíblia e volumes da Enciclopédia Barsa, que ainda se vendia de porta em porta). A escola me trouxe livros nos quais eu aprendi muito mais do que a fórmula da água ou a multiplicar 7 X 8... Livros que me mostraram realidades diferentes, lugares distantes, ideias diversas. E mais: a escola me trouxe pessoas que me ensinaram a pensar, a conviver, a lidar com o que eu era e com o que eu queria me tornar. A escola me permitiu reavaliar os preconceitos que eu recebi, ressignificar algumas verdades e me tornar uma pessoa melhor (e que ainda precisa melhorar muito)... Porque a ignorância, como bem disse Renato Russo, é vizinha da maldade.



Meus colegas e alunos em manifestação na Avenida Paulista, 
em defesa das escolas e universidases públicas! <3 #15M


A educação me permitiu escolher minha profissão e atuar no desenvolvimento das pessoas. Foi para isso que eu me tornei professora: para ver gente aprender, crescer, brilhar. Eu dediquei os últimos 20 anos da minha vida aos estudos, à pesquisa e à docência para isso. A coisa mais maravilhosa do mundo é ver o brilho no olho de um aluno quando ele entende um texto ou um conceito, tem uma ideia, cria um poema, um projeto, um experimento... E o que há de mais triste para mim, nesse momento, é ver a desesperança no olhar desses alunos diante das ameaças ao orçamento das escolas e universidades. É ver parte da sociedade brasileira apática diante do desmonte da educação pública. Porque isso significa condenar essas crianças e jovens ao não desenvolvimento, a permanecer, na melhor hipótese, no mesmo lugar cultural e social, sem chances de mudar, de se reinventar, de fazer algo relevante nas próprias vidas e no mundo.
Não deixemos que isso aconteça. Não deixemos que o projeto de falência da escola pública prossiga, projeto esse que tanto interessa aos grandes empresários da educação, que tem transformado a educação em mercadoria (nem sempre de qualidade) para quem quiser ou puder pagar. Defendam a escola pública, briguem por ela, exijam sua melhoria! Por favor, Brasil, nunca te pedi nada!

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A ameaça do (e ao) conhecimento

Toda vez que sou convidada para uma palestra, uma mesa, um bate-papo sobre literatura eu me sinto honrada. É uma honra para mim compartilhar a minha experiência com a literatura, tanto na pesquisa quanto na escrita ficcional ou na docência, e poder escutar e aprender com a experiência de tantas pessoas que constroem a cultura nesse país, ao longo de uma vida de muito trabalho.
Foi assim nesta semana, na mesa “Coleções literárias para a formação de leitores”, no IFSP-Pirituba. Mas a minha honra maior foi escutar. Não apenas porque Jiro Takahasi (o outro componente desta mesa onde repartimos o pão das palavras) é um editor veterano, premiado, que tem tanto a nos ensinar sobre a produção editorial no Brasil, especialmente sobre as renomadas coleções Vagalume e Para Gostar de Ler, que formaram gerações de leitores no Brasil. Mas também porque este editor afirmou, em vários momentos da sua fala, que todo o seu trabalho de décadas na área editorial só existe e faz sentido porque há leitores, citando a famosa frase de Borges: “Outros que se vangloriem dos livros que escreveram, eu me vanglorio dos leitores que tive”. E estendendo-a à atividade docente (já que Jiro também é professor), terminou sua fala agradecendo por falar de sua experiência a alunos de Letras, parodiando o escritor argentino: “Outros que se vangloriem das aulas que deram, eu me vanglorio dos alunos que tive”.
Em uma semana em que se anunciaram cortes no orçamento da educação pública e de bolsas de fomento à pesquisa, a fala de Jiro Takahashi é mais que um consolo, mas um convite à resistência. A mim, ela trouxe uma certeza: a de que toda a pesquisa na área de Linguagens e Ciências Humanas faz sentido porque há leitores e alunos que precisam dela. Falamos de coleções editoriais voltadas para um público jovem em formação, tanto em termos de leitura quanto de cidadania, e do quanto essas coleções são importantes para o contato do jovem com uma literatura que faça sentido para ele, que o represente e, ao mesmo tempo, apresente-lhe um mundo que excede as fronteiras da sua casa, da sua escola, do seu bairro, da sua cidade. Mas também falamos das limitações dessas coleções, da conflituosa relação entre educação, mercado e literatura juvenil – já que imperativos econômicos e didáticos influenciam na produção dos livros destinados a este público.
Tais conflitos se mostram presentes nos discursos políticos atuais, quando se coloca o professor como alvo de vigilância da sociedade, cerceado inclusive na escolha das leituras a serem feitas por seus alunos. Porque sabemos que a leitura foi e continua sendo vista como uma atividade perigosa, caso não seja bem orientada. Entenda-se orientação como um exercício de controle que vai desde a escolha de conteúdos que são ou não adequados à leitura e ao debate em sala de aula, até ao “monitoramento” da interpretação de textos, disfarçado sob a forma de roteiros de leitura, apostilas, nivelamento e homogeneização das avaliações de literatura e outros recursos didáticos. Assim, o risco de o jovem começar a pensar e questionar os valores que recebeu desde sempre é bem menor. Obviamente, nada disso é dito com clareza, talvez sequer pensado com clareza, mas diluído nas boas intenções de facilitar a leitura e torná-la mais útil para os jovens, bem como orientá-los moralmente. 


   
Teme-se que o jovem viaje sozinho pelas páginas dos livros, porque isso pode desviá-lo dos caminhos considerados certos – e são exatamente os desvios que trazem as surpresas que nos fazem pensar. Por isso, o conhecimento sempre foi considerado uma ameaça por aqueles que detêm verdades absolutas e que querem manter o poder a qualquer custo. É muito claro que o desmonte da educação pública e dos programas federais de fomento à pesquisa é um projeto, com motivações e implicações não apenas políticas, mas sociais e econômicas. Diante disso, mais do que nunca, temos a convicção de nosso papel enquanto pesquisadores e professores das universidades públicas: produzir conhecimento que atenda não apenas demandas imediatas (da medicina, da engenharia, da indústria), mas que desenvolva formas de questionar a própria produção de conhecimento, seus discursos, suas metodologias, seus limites e potencialidades. Só assim promoveremos uma educação de qualidade, que excederá os discursos eleitoreiros e das instituições de ensino.
Porque a leitura e a reflexão precisam exceder os limites da escola, da aula de língua portuguesa e literatura. Ao final da instigante discussão sobre as coleções literárias para a formação de leitores, um aluno nos perguntou nossa opinião sobre a crise do mercado editorial. Livrarias falindo, pequenas editoras fechando, grandes grupos editoriais em déficit. Algo que parece ser uma crise no sentido financeiro é também um sintoma de uma crise mais ampla, de valores, na qual podemos perguntar qual o valor do livro, e, especialmente, da leitura literária, ou mais amplamente, da cultura letrada, no atual contexto social. E não há como falar disso sem falar de uma educação que realmente forme leitores, que continuarão lendo para além dos anos escolares. Editoras nunca terão público suficiente em um país de analfabetos funcionais. Por isso, é preciso que elas se lembrem de seu principal foco: os leitores, seu desenvolvimento e o de uma relação especial com os livros. 

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Fly 3003


De repente surgiu aquele carro. Do nada surgiu aquele carro. Ela freou com toda a força e sentiu o cheiro do pneu queimando o asfalto. Quando o carro parou, a milímetros do outro, ela fechou os olhos, as pernas bambas, nem ouvindo o palavrão do motorista que estava atrás. Pesava-lhe o corpo. Não era apenas a descarga de adrenalina. Pesava-lhe o corpo pelas tantas noites pouco ou mal dormidas. Pesavam-lhe as pálpebras pelas lágrimas não derramadas. Pesava-lhe a alma sem asas.
Lentamente relaxou os dedos que, ato reflexo, apertavam com força o volante. Respirou fundo, os olhos ainda fechados, repetindo baixinho “Não foi nada, não foi nada”, como um mantra que lhe devolveria o domínio das pernas. Foi despertada subitamente pelo barulho das buzinas. O sinal abrira e a longa fila de veículos reclamava seu direito de seguir a vida. Ou ao menos o caminho para o trabalho, para a escola, para o banco, para qualquer instituição que lhe engoliria a vida. Ainda trêmula, ela ligou o carro, engatou a primeira marcha, colocando-se em marcha novamente na procissão urbana. “Vai passar”, pensou. Repetiu algumas vezes. Mentiras repetidas à exaustão acabam se tornando verdades, com ela haveria de dar certo.
Mas não passava. Sentia na garganta a náusea. Os dissabores de anos, engolidos a seco, o medo de perder o emprego, de não conseguir pagar as parcelas do financiamento, noites em claro pensando se teria coragem de pedir o divórcio, a indiferença da família, a angústia de não se sentir bonita apesar de todas as dietas e todas as roupas novas, tudo lhe subia do estômago, mistura acre de nervosismo, dor e frustração. O sinal vermelho. Pare. Pare com isso. Ela repetiu: vai passar.  
Mas não passava. Olhou seus olhos no retrovisor. Antes perfeitamente delineados, agora eram duas manchas horrorosas, entre o roxo e o acinzentado. Ela passou a mão pelos olhos, pelo rosto, assim que freara bruscamente para evitar o acidente, espalhando a maquiagem mecanicamente feita naquela manhã. Ela passou a mão pelo rosto novamente, com cuidado, como se as manchas sobre os olhos fossem dois hematomas, duas bofetadas da vida. A carícia leve pela pele do rosto trouxe-lhe um breve meio sorriso. Há tanto tempo ela não se acarinhava, nem em gestos nem em palavras. Demorou-se no gesto, sentindo a ponta dos dedos desenhando os lábios, o nariz adunco, os cílios, as rugas, a linha de expressão entre as sobrancelhas, escavada pelas preocupações.
Novamente o sinal verde, siga, as buzinas gritando: siga. Sempre em frente. Mas as pernas se recusaram. Ela novamente olhou seus próprios olhos no retrovisor. Há muito não se olhava nos olhos. Há muito não se encarava para não precisar reconhecer a dor, para não precisar dizer as verdades. E se olhando nos olhos ela soube – amava-se ainda. Quase tinha se perdido, mas era tempo. As buzinas continuavam, carros resfolegando como animais enraivecidos, motoristas a ultrapassavam gritando palavrões inaudíveis pelos vidros fechados, mas ela só olhos para os seus olhos, ouvidos para o silêncio que a tomava, um silêncio de compreensão.
Como se tivesse emergido de águas profundas, ela de repente ouviu o barulho ao redor. Atrás dela, um motorista manobrava, tentando ultrapassá-la, e, logo o fez, o sinal fechou novamente. O homem gritava e fazia gestos impacientes e obscenos. Como se tivesse acordado de um sono profundo, ela acompanhava com esforço seus braços enfáticos. Achou graça, era como se ele fosse um daqueles bonecos infláveis colocados na pista para sinalizar obras, movendo desengonçadamente os braços. Ela começou a rir. E de repente, seus olhos desceram e se fixaram na placa do carro: FLY 3003.
   Leu novamente, agora em voz alta, a placa do carro. Notou que as letras formavam uma palavra em inglês. E os números, curiosamente, formavam um número que continuava o mesmo ao ser lido em ambas as direções. Como se chamavam esses números? Não se lembrava. Mas sabia o que significava a palavra, significava voar. Ela sabia por causa da única viagem internacional que tinha feito. Três mil e três. Também podia ser trinta zero três. Trinta do três. Sua data de nascimento. Como era mesmo o nome desse tipo de número?
Novamente o verde tomou conta dos semáforos e ela ligou o carro, ainda pensando no nome. Paráfrase? Paranomásia? Tinha certeza de que começava com “pa”. Voar. Não podia ser “voe”? Não podia ser um convite? PALÍNDROMO! A palavra veio inteira em sua mente, em caixa alta. Era isso! Número palíndromo. Mas agora não era mais. Não era mais 3003! Era 30.03. Voe, 30.03! Era um convite, ela teve certeza agora. Um convite para as pessoas nascidas no dia 30 de março voarem. Um convite para que sua alma ganhasse asas.
Ela prosseguia na longa avenida, agora as pernas obedeciam, a respiração se controlava, as mãos firmes, mas não mais tensas no volante. Dirigia como se a longa avenida não tivesse fim, e só muito depois percebeu que perdera a saída que a faria continuar no trajeto para o trabalho. Fez o primeiro retorno que encontrou. Sim, chegaria atrasada no trabalho. Mas estranhamente, essa conclusão não a afligiu. Dirigia devagar, como se nada ou ninguém a esperasse.
Quando entrou na sala que dividia com mais três colegas, notou olhares estranhos. Passou a mão, instintivamente, pelo rosto. Era a maquiagem borrada que criava aqueles pontos de interrogação nos olhos alheios? Ou era a flama que se via em seus próprios olhos? Não quis se explicar. Não queria palavra que rompesse aquele silêncio que a abraçava, compreensivo e benfazejo. Então apenas sentou-se em sua mesa. Diante do computador ainda desligado, um origami. Ela não sabia como aquele passarinho tinha vindo parar ali, mas sabia que, mais uma vez, eram as asas de que sua alma precisava tanto, tanto...