segunda-feira, 5 de maio de 2014

A falácia da simplificação

Segundas-feiras são tradicionalmente lamentosas - por que o fim de semana passou tão depressa? Imagine-se então uma segunda-feira pós feriado prolongado. Comecei o dia com um certo mau humor, ainda que seja maio, o mês mais lindo do ano, com suas manhãs frescas, azul denso no céu, luminosidade única.
Mas nem o azul de maio me trouxe consolo e liguei o computador para começar meus trabalhos, quando me deparei com uma notícia triste: "Escritora muda a obra de Machado de Assis para facilitar a leitura" (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/05/1445858-escritora-muda-obra-de-machado-de-assis-para-facilitar-a-leitura.shtml). Os leitores podem alegar que há coisas muito mais tristes acontecendo agora e que me entristecer com isso parece fútil diante das guerras e das mazelas terríveis pelas quais passa a humanidade. Mas eu explico porque essa notícia é digna de tristeza, já que interrompi outros trabalhos para escrever este texto e partilhar as ideias que começaram a me cutucar sem trégua.
Não é mistério para ninguém que sou apaixonada pela literatura, como escritora e como docente. E amo muito a obra de Machado de Assis. Sem dúvidas, este é um dos maiores autores do nosso país, quiçá de nosso continente e da literatura universal, embora pouco reconhecido internacionalmente. Mas não pensem que o meu texto vai na direção do "é um sacrilégio adaptar o grande Machado". Não se trata disso. Não se trata de incensar um autor canônico, dizendo que, depois dele, não há nada de bom a ser escrito. Nem condenar o autor que "aceita esse trabalho sujo" (conforme eu li em um comentário no Facebook), ou seja, o de adaptar uma obra clássica.
O que me incomodou nesta notícia foi a ideia leviana de que é possível "simplificar um autor", sem "mudar o que ele disse" - afirmações da escritora Patrícia Secco, que lançará em junho uma "versão simplificada" de O alienista. Elas demonstram que Secco não compreendeu muito do fazer literário. Afinal, se ela acredita que, tornando as frases mais curtas e trocando palavras difíceis por sinônimos ela estará, ainda assim, apresentando aos leitores um texto de Machado de Assis, e não de Patrícia Secco, ela não se deu conta ainda de seu ofício. Literatura não admite copidesque (salvo se feito pelo próprio autor, ou com a anuência deste, e preferencialmente antes da publicação): cada palavra tem seu peso, sua substância, seu sentido naquele texto que é único não necessariamente por suas ideias, mas por sua forma. E isso ocorre não apenas em textos de autores canônicos, mas em textos de autores jovens e pouco conhecidos que fazem literatura sem nenhum prestígio, nenhum glamour...
Então o problema não é "profanar" o Machado de Assis, mas a visão rasa, equivocada do conceito de autoria e de construção literária que Secco deixa transparecer em sua fala. Talvez ela não tenha percebido, ao ler Dom Casmurro, que seu enredo, ou seja, os fatos relatados no livro não são inovadores: um homem, ao considerar seu filho parecido com seu melhor amigo, considera sua esposa adúltera; eles se separam e, na velhice solitária, ele escreve um livro para relatar como ela sempre fora dissimulada e interesseira. Quase poderia ser transformado em um twitter, só para lembrar outra bobagem proferida, não há muito tempo, sobre outro clássico da literatura. Mas o que importa neste livro não são as ideias, ou "o que ele disse", mas como disse. O que faz deste livro um dos mais interessantes que já li é a personalidade de seu narrador-personagem, que sutilmente deixa transparecer que o foco daquele livro não é o adultério, mas o ciúme, tão intenso que ultrapassa a própria passagem do tempo (outro tema fundamental da obra). Há formas de simplificar isso? Se os nossos alunos não entendem que a palavra ressaca pode ter mais de um sentido, então o jeito é modificar a célebre expressão "olhos de ressaca", que caracteriza Capitu? Secco realmente acredita que fazer isso não seria "mudar o que ele [Machado de Assis] disse"?
Entretanto, gostaria de ressaltar, de forma bem clara, que não sou contra adaptações. E não estou me contradizendo, conforme os leitores perceberão. Minhas pesquisas, desde o mestrado, trabalham com adaptações, que não considero, necessariamente, como mutilações de obras literárias. O que eu quero dizer é que o juízo de valor não está necessariamente atrelado ao fato de uma obra ser ou não uma adaptação de outra obra anterior, mas na sua qualidade, na sua relevância em si. Obviamente, há adaptações muito ruins, que se constituem em paráfrases simplistas e mal feitas de obras que, no original, são riquíssimas, verdadeiros patrimônios da arte nacional e universal. Essas sim são meras mutilações. Em contrapartida, há adaptações (não apenas literárias, mas plásticas, cinematográficas) que dialogam com as obras primeiras (isto é, àquelas a que fazem referência) - configuram-se em objetos literários, que, embora tenham parte de seu sentido atrelado a uma obra que os antecede, tem autonomia e qualidade artísticas.
Esclareço esse ponto de vista muito particular, ao qual cheguei depois de anos trabalhando como professora e como pesquisadora de literatura infanto-juvenil, para dizer que não acho que fazer adaptação de uma obra clássica é "um trabalho sujo". O problema é a falácia da simplificação, isto é, a crença equivocada de que temos que tornar tudo fácil e divertido para os nossos alunos. A falácia consiste exatamente na ideia de que a diversão só acontece com o que é fácil, e que só faremos nossos alunos gostarem de ler se oferecermos a eles textos que eles compreendam imediatamente. O que não é verdade: crianças e adolescentes são muito espertos, e detestam textos bobos. Na maioria das vezes, eles percebem rápido quando os consideramos ingênuos e pouco capazes e usam isto quando lhes é conveniente. Mas quando os tratamos como pessoas pensantes e apresentamos um livro mais denso, dizendo que ele é maravilhoso, um pouco difícil, mas que confiamos na inteligência e coragem deles para lê-lo, a relação com o livro, com a literatura e com a escola muda.
Outra falácia da simplificação é que ela parece "boazinha", comprometida com a educação, mas, indiretamente, subestima nossos alunos e alcança efeitos inversos aos que propõe. Ouve-se tanto que os adolescentes leem cada vez menos e que, quando o fazem, não alcançam os níveis de compreensão leitora necessários à sua faixa etária e escolar. E como vamos melhorar isso? Oferecendo aos nossos alunos textos cada vez mais simples, com frases curtas e palavras que eles já conhecem? Ou o papel do professor de língua portuguesa e literatura não é ampliar o conhecimento de vocabulário, de estrutura textual, e consequentemente, da capacidade de reflexão e expressão?
Sinceramente, não creio que isso se alcance com o "Eu simplifico isso" de Patrícia Secco. Especialmente porque é ingênuo demais acreditar que é possível simplificar obras que não são complexas apenas na linguagem - esta apenas reflete a complexidade do próprio ser humano e de sua vida em sociedade, temas não só de Machado de Assis, mas de outros grandes autores da literatura nacional, clássicos ou contemporâneos.

2 comentários:

  1. Que espécie de jornalista escreve uma matéria sem pesquisar diretamente na fonte? Eis o texto do livro em questão: http://www.reciclick.com.br/portal/wp-content/uploads/2014/03/Alienista-completo-Pat.pdf Como se pode ver, a matéria do jornal é falaciosa!

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  2. Caro anônimo,

    você se refere ao jornalista da Folha de São Paulo que fez a matéria sobre a publicação, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/05/1445858-escritora-muda-obra-de-machado-de-assis-para-facilitar-a-leitura.shtml?
    É que se você fez referência a mim, devo esclarecer que não sou jornalista: sou escritora ficcional e professora de literatura.
    E não entendi porque você afirma que a matéria é falaciosa: por acaso as afirmações da autora disponíveis nesta matéria são falsas? Ela se manifestou a este respeito?
    Vi o link que você postou: trata-se do PDF do texto de "O alienista" facilitado, mas com o nome de Machado de Assis na capa, sem qualquer advertência ao leitor de que se trata de um texto adaptado. Isso me faz manter cada palavra que eu disse em meu texto neste blog...

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