sábado, 27 de agosto de 2011

Pereirão além da estampa

Nesta semana, a rede Globo de televisão iniciou mais uma novela - o bom e velho folhetim televisivo, tão desprezado por nossa intelectualidade e amado por pessoas de todas as classes sociais. O que os intelectuais ignoram é que a telenovela brasileira é patrimônio nacional, faz parte da nossa cultura, do nosso imaginário, da nossa educação narrativa. Não se pode desprezar a importância de um objeto como esse. Por outro lado, o que os amantes das novelas ignoram é que esse objeto tem se empobrecido na medida em que suas tramas e recursos expressivos se repetem à exaustão, bem como seus personagens reproduzem estereótipos que passam longe, por vezes, da complexidade do ser humano.
E por falar em estereótipos, as protagonistas de "Fina Estampa" não fogem deles, aparentemente. Teresa Cristina é a típica mulher rica, fútil, mimada. A megera que maltrata seus empregados, inferniza o marido, controla a vida dos filhos (ou, pelo menos, tenta). No polo oposto, Griselda Pereira, mais conhecida como "Pereirão", marido de aluguel, é a mulher trabalhadora, chefe de família, que quebra os preconceitos: é independente, não se importa com sua aparência, com futilidades (ela tem 3 filhos e um neto para criar, como declara a todo instante para outros personagens). Será mesmo?
A personagem de Pereirão é, obviamente, aquela que cativa a simpatia do público brasileiro, que se identifica tanto com sua batalha diária, com suas dificuldades, quanto com sua defesa da família. Ela é a mãe que se sacrifica pelos seus (outro velho e conhecido estereótipo das novelas brasileiras, Manoel Carlos e suas Helenas que o digam!). Mas há algo que me incomoda nessa personagem: ao contrário de quebrar preconceitos e realçar o valor da mulher, Griselda reforça a imagem da mulher que, para se estabelecer profissionalmente, se fortalecer emocionalmente e conquistar o respeito da sociedade, se masculiniza.
No que depilar o buço, passar um batom, usar cremes, luvas e ser gentil interfereria na competência de Griselda? Afinal, é possível que uma mulher trabalhe com manutenção e serviços gerais sem se tornar um homem. Apesar desse tipo de serviço ser árduo, exigir roupas confortáveis e que serão sujadas e manchadas de graxa, tinta e outros materiais (como um macacão de mecânico, usado pela personagem), nada impediria que Griselda fosse feminina. Por que a feminilidade não é só uma roupa. É sentimento, identidade, coisas mais complexas...
Mas a roupa de Griselda esconde suas formas femininas (tanto que personagens a chamam de senhor por não reconhecerem uma mulher), símbolo da negação da própria sexualidade. Ela ignora completamente os olhares do belo e apaixonado Guaraci, patrão de seu filho e que enxerga a mulher por trás da máscara masculina. A pergunta que me fica é: é preciso negar a sexualidade para ser a mãe exemplar e mulher forte? O corpo, a sexualidade feminina, nessa ótica, seria uma fonte de fraqueza?
Obviamente, a imagem que a trama pretende passar é de uma mulher que se tornou forte. Mas volta a pergunta: é preciso ser homem para ser forte? Quando Griselda enfrenta um cliente que não quer pagar seus serviços, alegando que vai quebrar o que fizera, e ainda responde agressivamente a um grupo de homens que assistia a discussão, num quiosque de praia, um deles declara: "Isso é que é macho!".
Chamar para a porrada, tradicionalmente, é mesmo coisa de homens (eu, como pessoa e mulher, acho que há maneiras mais inteligentes e menos danosas de se resolver os problemas do que a violência física). Mas discutir, reclamar seus direitos e enfrentar um homem que os desrespeita não. Isso é coisa de mulher forte, também. Assim como trabalhar de sol a sol, sustentar uma família, se desdobrar entre a jornada de trabalho e a criação dos filhos e netos.
Coisa que vai muito além da estampa. Mulheres fortes fazem tudo isso sem perder a feminilidade (mesmo que o dinheiro e o tempo seja curto, ou que muitas vezes a sutileza fique de lado e elas tenham que se impor de forma mais agressiva). Nesse ponto, as mulheres brasileiras são professoras!

Um comentário:

  1. Olá, Lia.

    Ótimo o seu texto. Você sabe o quanto concordo contigo sobre esse olhar enviesado que a telenovela (que é uma extensão da sociedade) lança às mulheres. Elas usualmente são as otárias apaixonadas ou as submissas. A nova novela das oito aparentemente inova, mas, como você tão bem constata, só fica na "estampa" da personagem. Uma mulher que se masculiniza para ocupar o lugar de provedor na sociedade ainda é reflexo de nossa cultura machista, que deseja tirar da mulher-fêmea qualquer espaço de decisão na sociedade. Muito me admira que o criador da Griselda fez mais de 20 anos antes a Raquel de Vale Tudo: mulher esforçada, decidida e feminina.

    Bjs e parabéns pelo texto.
    Dani

    ResponderExcluir