sexta-feira, 13 de abril de 2012

Suporta-se com paciência a cólica da próxima

O dia 12 de abril de 2012 deverá ficar marcado no calendário das conquistas dos direitos das mulheres neste país: ontem, depois de 8 anos em tramitação na justiça, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo deixou de ser considerado como aborto e, portanto, como crime. A decisão obteve 8 votos a favor e 2 votos contra, no STF.
Particularmente, considero muito fácil compreender o quanto essa decisão é justa, já que livra mulheres do que pode ser considerado uma tortura. Os incômodos e sacrifícios de uma gravidez são suportados por uma mulher como sacrifício em prol de outra vida, acalentado pela esperança de ver nascer o filho (quando desejado, obviamente). Exigir de uma mulher que carregue em seu ventre, durante nove meses, com os riscos inerentes de qualquer gravidez, um ser fadado à morte é torturá-la. Como bem disse o ministro Ayres Brito, isso seria martírio, e martírios são voluntários. Não devem ser impostos por lei.
E por falar nas declarações dos ministros ao justificarem seus votos contra ou a favor, chama a atenção uma outra frase do próprio Brito: se os homens engravidassem, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos estaria autorizada "desde sempre". Ela me remete ao famoso dito popular "Pimenta nos olhos dos outros é refresco". Ou como diria Brás Cubas, de forma mais sofisticada, "Suporta-se com paciência a cólica do próximo". Neste caso, da próxima: considerando que a maioria dos legisladores são homens, era simples que eles exigissem que as mulheres se sacrificassem e levassem adiante a gestação de um feto praticamente natimorto, o que certamente gera danos emocionais indeléveis. Não doía no corpo deles. Talvez isso também explique, ao lado das crenças androcêntricas e cristãs arraigadas em nossa sociedade, a morosidade que envolve qualquer votação que envolva questões relacionadas à descriminalização do aborto.
Mas os leitores podem alegar que muitas mulheres são contra a decisão do STF; que muitas delas se deslocaram à Brasília para fazer passeatas, protestos, sem falar daquelas que, em suas comunidades e pela internet, fizeram inumeráveis petições públicas e abaixo-assinados em repúdio à possibilidade da "legalização do aborto de anencéfalos" - expressão que por si já expressa a visão destas pessoas sobre o caso. Respeito essas mulheres heroicas, a maioria religiosas, que acham que levar a gravidez até o fim é um destino, é uma missão. Elas têm o direito de pensar e vivenciar isso, bem como defender publicamente suas posturas. Entretanto, como vivemos num Estado laico e democrático (ao menos na teoria), elas não podem, por conta de suas crenças, impedir que outras mulheres tomem uma outra decisão, a fim de pouparem-se, a si e a suas famílias, de um grande sofrimento.
Mas os grupos religiosos não têm voz apenas fora do Congresso Nacional, ou do próprio STF - eles se fazem ouvir dentro destas instituições (e de forma que julgo cada vez mais perigosa). Não reforço o chavão marxista de que "a religião é o ópio do povo", mas é preciso que as instituições religiosas percebam os limites dos seus templos, que reconheçam que nosso país é diverso: possui pessoas de inúmeros credos e até de nenhuma crença. A decisão do ministro Marco Aurélio de negar a participação de grupos religiosos no plenário do STF durante o julgamento foi, a meu ver, muito sábia. Plenário não é púlpito. Neste sim as religiões devem afirmar seus dogmas e princípios para condenar a prática do aborto (como o fazem, independente da circunstância em que ele ocorre).
Lamentável o argumento de Gilmar Mendes ao condenar essa decisão, considerando-a como "faniquito anti-clerical", sugerindo que, daqui a pouco, talvez tenhamos a "supressão do Natal do nosso calendário". O Natal é uma unanimidade, ministro, inclusive porque alavanca o comércio. Podemos dizer que, por parte dos grupos religiosos, a recusa cega e indiscutível da descriminalização do aborto também é. Portanto, para que chamar ao debate um grupo que não quer debater? Que considera a bandeira da "Defesa da vida" sem questionar o que é vida, de quem é a vida e de que forma e para que ela está sendo "valorizada"?

Um comentário:

  1. Oi, Lia. Tudo bom?

    Quanto tempo! Ótimo texto, como sempre ponderado. Concordo contigo de que todos têm direito a ter suas crenças porém, o que deveria se sobrepor é o fato de vivermos num Estado laico. Infelizmente nem sempre isso conta, porque a igreja está por demais presente no plenário, onde incontestavelmente impõe seus dogmas. Felizmente ela não foi convocada nessa votação, ou senão essa questão ainda estaria se arrastando. Eu não queria levantar bandeira feminista, mas é impossível, mesmo, pensar na questão sem me reportar aos séculos de dominação do homem sobre à mulher (quer dizer, da ainda dominação, não), que impõe como inerente ao sexo feminino a obrigação de se deleitar com os desgastes gerados por uma gravidez. É aviltante que ela seja obrigada a carregar dentro de si uma vida que certamente vai ser interrompida durante o parto. Essa vitória é de todas as mulheres, não só das grávidas de anencéfalos.

    Bjs!
    Dani

    ResponderExcluir