segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A menina, as armas e os livros

Um dia vi um brilho intenso nos olhos de um homem que a vida em muito endureceu. Logo o brilho se transformou em uma lágrima que escorreu pelo rosto do homem que raramente chorava. Este homem era meu pai. Ele discretamente enxugou essa lágrima antes que outros a vissem, antes que fotógrafos chegassem, junto com a minha irmã. Era o dia de sua formatura na Faculdade de Direito. Mais do que um diploma, era um dia histórico para nós: pela primeira vez na história da nossa família, uma pessoa teria um diploma de graduação. Mais do que isso: era a primeira mulher a conquistar esse lugar.
A lágrima era misto de orgulho, de alegria, mas também testemunhava os sofrimentos e as renúncias que certamente meus pais fizeram para que eu e minhas irmãs estudássemos nas melhores escolas. Mais tarde, naquele mesmo dia, meu pai disse uma frase que está gravada em minha mente: "Não me arrependo de nenhum dia, de nenhum centavo que investi em vocês". Embora a linguagem pareça tão mercadológica, isso significa "Eu amo vocês, minhas filhas" ou "Eu me orgulho de vocês, minhas filhas", na linguagem do homem que saiu de casa aos 17 anos com duas mudas de camisa e um sapato furado, trabalhou como jardineiro, pedreiro, metalúrgico, segurança e, enfim, montou um pequeno comércio. Do homem que, diante de uma pequena ascensão social, optou por mudar suas filhas de escola, ao invés de realizar seus sonhos de consumo. Do homem que muitas vezes prezou mais a contabilidade que o prazer, frustrou suas filhas adolescentes por não lhes dar algumas roupas, viagens e festas, mas que jamais se recusou a comprar um livro. E isto mudou a minha vida.
Venho de uma família machista (como tantas no Brasil) em que a educação das meninas não é a prioridade. Tenho uma prima cujo irmão fez curso pré-vestibular, ingressou na universidade, mas ela não teve o mesmo apoio da família. Para ela, não havia recursos para o pré-vestibular, nem para a mensalidade de uma faculdade privada, nem qualquer apoio para que ela saísse da cidadezinha em que morava para fazer uma universidade pública (afinal, há exemplos na família de mulheres que saíram da casa dos pais para estudar, trabalhar, e "se perderam"). Sim, queridos, século XXI, não estou relatando o que aconteceu com a minha bisavó, infelizmente! No fim de semana em que eu fazia o vestibular da UNICAMP, minha mãe teve que ouvir de um tio a seguinte pérola: "Pra que estudar tanto para limpar bunda de criança?". Ele riu, minha mãe, não. Ela, com toda a delicadeza que lhe é peculiar, disse: "Eu espero que minhas filhas limpem bunda de criança porque eu quero muito ser avó, mas elas não vão fazer só isso na vida".
São muitos os exemplos que se espalham para além da minha família, na qual também há exemplos notáveis de ruptura com este pensamento retrógrado e opressor, como meus pais, que criaram três meninas com livros nas mãos. Nesta semana, ao saber que o Prêmio Nobel da Paz havia sido entregue a  Malala Yousafzai, fiquei muito feliz e emocionada. Para os que não sabem, Malala é uma adolescente de 17 anos que, com apenas 12 anos, começou a escrever sobre a situação das meninas no Paquistão, sob o regime talibã. O pai de Malala, dono de uma escola, contrariava o regime ao permitir que as meninas estudassem, e estimulava a militância da filha em favor da educação escolar feminina. Em 2012, aos 14 anos, houve uma tentativa de assassinato, na qual Malala levou um tiro no rosto e um no pescoço, ficou em coma por vários dias, mas, felizmente, sobreviveu e foi transferida para um hospital na Inglaterra. Recuperada, ela escreveu uma autobiografia e continua sua militância em favor da educação das meninas.

 Malala Yousafzai, Prêmio Nobel da Paz em 2014
O exemplo de Malala me move e comove. Sempre pensei na sorte tão diversa que tantas mulheres da minha família tiveram por não terem acesso a uma educação que lhes ensinassem que elas tinham valor, que eram tão inteligentes quanto os homens e que o mundo também era grande para elas. Que não é a presença de um homem, uma aliança no dedo ou a ausência destes que definem o seu valor. Que lugar de mulher é onde ela escolhe estar. Que o que você lê, reflete e pensa é mais importante que o seu peso ou a cor do seu cabelo. E principalmente: que, independente do sexo, somos seres humanos dignos de respeito, e  por isso jamais devemos aceitar sermos diminuídas, humilhadas, oprimidas ou agredidas de qualquer forma.
Sim, foi a minha educação escolar, foram os livros que chegaram às minhas mãos que me fizeram enxergar a mim mesma como esse ser humano digno de respeito. A literatura me formou como um ser mais sensível e humano, capaz também de respeitar mais os que estão ao meu redor. A literatura alimentou minha ojeriza à violência, à opressão e meu amor à liberdade, "essa palavra que o sonho alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda", como disse a Cecília Meireles. E por isso, ainda acredito que o livro é a coisa mais subversiva que colocaram em minhas mãos. Esta é a razão pela qual os regimes ditatoriais temem que uma garota leia, que faça do livre pensamento e de suas palavras as suas armas, resistindo às armas de fogo e não se intimidando diante delas. 
E Malala nem suspeita que temos isso em comum: que tivemos pais que acreditaram na importância da nossa educação, que acreditaram no nosso valor e na nossa inteligência.
Obrigada, pai! Obrigada, Malala!

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