segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Somos tão jovens

Ontem, domingo à noite - dia e horário propício para a famosa depressão pré-segunda-feira. Eu estava no meu sofá rodando canais e, em meio à mediocridade televisiva, encontrei consolo no Canal Brasil, que passava um documentário que há tempos eu queria assistir: "Rock Brasília", de Vladimir Carvalho. Há tempos, curiosamente, é o título de uma das canções de que mais gosto da banda Legião Urbana, talvez a mais importante desta geração do rock dos anos 80, nascida na capital do Brasil, em um momento em que, embora já se esfacelando, a ditadura militar liderava o Brasil.
Este texto não será uma resenha sobre este documentário, que me emocionou muito em alguns momentos por me trazer canções que embalaram meus anos de adolescência e me ensinaram a ler. E é sobre isso que quero escrever. Sobre como aprendi a ler ouvindo. Sim, aprendi a ler ouvindo Legião Urbana. Renato Russo foi o primeiro poeta que li: naquele momento, com 13/14 anos, eu nem percebia o quanto de elaboração linguística suas letras continham, afinal, eu não estava ouvindo Legião para identificar metáforas. Mas eu sabia que aquelas letras me faziam pensar na vida. Ouvir Renato Russo cantando era ter certeza de que alguém entendia o que eu estava vivendo, ao mesmo tempo que seus versos me traziam um estranhamento, uma surpresa, uma pergunta: como alguém conseguiu dizer meus sentimentos desta forma? Como alguém consegue descrever um mundo com essas palavras, com essas rimas e com esse ritmo? E eu saía cantando "Quase sem querer", "Tempo perdido" e "Há tempos" dizendo que eram canções feitas para mim, o Renato (olha a intimidade!) ainda não sabia, mas aquelas canções eram minhas.
E hoje sabendo que as canções e os poemas pertencem àqueles que se apropriam deles, àqueles que passeiam com os pés descalços entre as suas palavras como quem anda lentamente pela praia (os pés se marcando no espaço onde areia e mar se encontram), eu digo ainda mais que estas canções são minhas. E penso em sua complexidade e compreendo porque elas me traziam mais perguntas do que respostas, naquele momento da vida em que a gente perdia as crenças nas respostas que a família, a religião, a escola, os adultos nos davam tão prontamente. Eu queria novas respostas. Mas uma canção que diz "Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana/ Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana/ E nas escolas as crianças aprendem a repetir música urbana" reafirma: desconfie das instituições, questione o que lhe foi ensinado, não creia nas respostas simplistas...
E vendo aquele documentário, eu me deparei com um pensamento: onde foi parar este inconformismo juvenil? Onde foi parar esta desconfiança sadia que fez com que gerações de jovens tivessem o ímpeto de rejeitar qualquer governo opressivo e ditador? Onde? E a resposta assustadora: morreu. Então, ontem, Dia de Finados, lamentei a morte de uma geração, sem forças para escrever uma elegia que a homenageasse com a poesia que ela merece.

Laerte e seu humor para nos levar à lucidez!

 
Sei que minhas palavras podem soar exageradas, mas esse é o meu sentimento, uma espécie de luto ao perceber uma onda neoconservadora que se levanta em nossa juventude e que ameaça afogar princípios democráticos que, em um passado recente, eram negados, e pelos quais pessoas lutaram e morreram. Ao ver pessoas, e principalmente, jovens pedindo um golpe militar - sim, um golpe, este é o nome exato quando há intervenção em um governo eleito democraticamente -, a minha perplexidade é enorme, mas não consigo simplesmente dizer que eles fazem isso porque não têm memória ou conhecimento histórico.
Como diria a canção de Renato Russo, "somos tão jovens", mas essa juventude, pela justificativa da pouca memória ou pouca maturidade, não justifica algumas posturas que me parecem indefensáveis. Não acho que estes jovens sejam inocentes, que eles não sabem o que significa uma ditadura, que eles não sabem sobre a censura, a corrupção, a tortura e a morte que pairaram sobre o Brasil no período militar. Em 1964, houve setores da sociedade civil que saíram às ruas em apoio aos militares - a elas sim, pode-se dar o benefício da dúvida: elas não sabiam, talvez, o que estava por vir. Elas não sabiam que seus filhos poderiam morrer por dizerem o que pensavam.
Mas hoje, 2014, 50 anos depois, sabemos. Todos sabemos. Vi em um vídeo na internet um jovem dizendo que "aconteceram coisas na ditadura militar, mas não é tudo isso que falam, as pessoas exageram". Percebam o inominado: "coisas"... Deem-se nome aos bois: ocorreram censuras, torturas, mortes - mas se parte desta nova (e da não tão nova) geração quer negar isso, não é por ingenuidade, é porque, no fundo, está de acordo com este sistema. Tenho a impressão que, há alguns anos, as pessoas tinham um certo pudor em declarar isso, o que me dava alguma esperança... Mas tenho percebido que as ideias perigosas de resolver os problemas da nação pela força e pela violência estão sendo veiculadas em alto e bom som, por um número assustador de pessoas.
Somos tão jovens, no exercício da democracia. E eu temo que nossas conquistas, ainda frágeis, se percam pela inadvertência dos que não as valorizam. Tomemos mais cuidado com aquilo que pedimos - há sempre a possibilidade de se conseguir. E se um dia alguém invadir nossas casas às 3 horas da manhã sem mandato judicial e um ente da nossa família ou nossos amigos começarem a desaparecer sem prisão ou julgamento notórios (coisa comum nos regimes de exceção), não sejamos hipócritas a ponto de dizer que não sabíamos.     

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