quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os mistérios da maçã

Sei que esse título, tão sugestivo, pode levar os leitores a pensar que falarei de algo proibido e delicioso, mas sinto decepcioná-los: a maçã do título se refere tão somente ao nome e logo da empresa mais falada no dia de hoje, a Apple, cujo fundador, Steve Jobs, faleceu, vítima do câncer, essa doença cruel que não faz distinção entre ricos e pobres, homens e mulheres, gênios ou néscios.
Não se pode negar que Steve Jobs era um ser humano acima da média, no que se refere à inteligência e habilidade nos negócios. Afinal, ele ajudou a construir uma era, na qual o computador é parte fundamental da vida e da comunicação entre as pessoas. Entretanto, não posso me furtar à sensação de perplexidade diante da comoção que sua morte ocasionou. Flores, bilhetes com mensagens amorosas (como "Nunca te conheci, mas você mudou minha vida", "Eu te amo e vou sentir sua falta") e lágrimas de fãs nos dão a impressão de estar acompanhando o funeral de alguma celebridade pop, de algum atleta ou cantor famoso.

                                                Campbell's soup cans, Andy Warhol (1964)

Diz um verso lindo: "Não perguntes por quem os sinos dobram, dobram por ti". Acredito que a morte de qualquer ser humano relativamente jovem e cheio de possibilidades deve nos atingir. Mas diante da insensibilidade dos nossos tempos ao que é realmente importante, pergunto-me o que significa essa comoção e, sobretudo, a relação emocional que muitas pessoas têm com a marca Apple.
Marx dizia, resumindo grosso modo, que uma das grandes estratégias do capitalismo era criar necessidades, para vendê-las. Pois, estendendo a ideia, acho mais hábil ainda a estratégia de transformar o objeto em sujeito (no plano oposto mas complementar à reificação do homem). Em outras palavras, as coisas deixam de ter seu valor apenas enquanto objeto, e passam a ser aquilo que simbolizam numa sociedade, ou mesmo são tratadas com uma deferência de pessoa. Assim, habilmente, uma tendência de consumo torna-se um estilo de vida. É assim, parece-me, que se sentem os consumidores da Apple. Eles não são meros consumidores, são fãs. É como se, ao comprar um computador, um i-pad, um i-phone, um i-qualquer coisa que tenha a marca Apple, eles agregassem conceitos, valores, identidades às suas vidas. Essa impressão me veio no lançamento de muitos produtos da marca, e se confirma na reação comovida à morte de um dos seus co-fundadores. Um gênio, é claro. Mas quantos deles já não faleceram sem notas na imprensa, sem flores, sem o reconhecimento de sua dedicação à ciência, à arte, à tecnologia, à humanidade?
Ainda pensando na transformação do objeto em sujeito, penso na inversão da relação entre o meio e o fim. Não há dúvidas de que o computador e, sobretudo, a internet, ampliaram as formas de comunicação, mas não se pode esquecer que ambos são meios, são ferramentas. A finalidade é a própria comunicação, o próprio conhecimento, anteriores ao computador - este e qualquer meio tecnológico é que deve a eles, e não o contrário! Acho risível alguns comerciais de provedores de internet e seu falacioso argumento de que eles trarão às crianças e adolescentes mais estudos e melhores notas. Sem desmerecer os muitos recursos didáticos que o computador trouxe, tais recursos são absolutamente ineficientes sem a curiosidade, a vontade de aprender, o esforço de ler e pensar. Como disse uma vez uma propaganda (não sei se de celulares ou computadores, não me lembro): "Não adianta a banda larga, se a mente é estreita".
Esse post está ficando muito longo, mas não sei como terminá-lo e ainda não esgotei as minhas ideias - aliás, acho que talvez leia isso amanhã e me venham outras, o que faz parte do meu caótico processo filosófico.

P.S. - Este post é dedicado ao Odirley, que me instilou (como a serpente questionadora, aproveitando a sugestão bíblica do título) muitas das ideias críticas deste post, conversadas no café da manhã, nos almoços e jantares. Ah, o que seria dos filósofos sem a comida?



2 comentários:

  1. Você tinha razão, Ju: eu ia querer comentar o seu post de hoje! :-)
    Já que analiso discursos, deixo aos leitores desse comentário uma informação importante para entender a sua produção: sou fã da Apple, rs... Sou usuária do Mac há 10 anos, adoro os computadores e sempre faço propaganda, como todo mundo que me conhece sabe. Não tive, no entanto, nenhuma reação emocionada com a morte de Steve Jobs. Apenas lamentei que um cara tão inteligente tenha morrido tão cedo...
    Voltando ao seu blog, concordo quando você diz que os usuários Apple tem uma "identidade", que são "fãs". E, nesse contexto, o Steve Jobs era sim uma celebridade, Ju. Seus produtos eram ansiosamente aguardados (não à toa as filas nas lojas em cada novo lançamento), não só pela repercussão da qualidade dos itens já lançados pela marca, mas também porque o próprio Jobs fazia questão de apresentá-los ao mundo. O lançamento dos produtos da Apple não acontecem (ou não aconteciam, sei lá) apenas em sites e propagandas, mas em espécies de palestras nas quais o seu criador apresentava a nova criatura, sabe? Meio doido, hehehe, mas pelo menos é assim que eu percebia. E a coisa crescia porque o cidadão conseguia pensar umas coisas que ninguém tinha pensado, e isso aumentava ainda mais a fama - não só de seus produtos, mas a dele mesmo. Nesse sentido, o lamento pela sua morte pode ser comparado, sem medo, ao prestado a uma celebridade. Hoje, #todos chora (os geeks do mundo pelo menos :-)
    Em relação ao seu comentário sobre os computadores e a comunicação, realmente é essa que importa. No entanto, a ferramenta é parte essencial no processo, ao meu ver, pois estende ou limita o potencial de comunicação do orador. Se não fosse assim, já teríamos esquecido o nome de Gutemberg, não é mesmo? Posso estar exagerando - até por admirar o talento e as criações de Jobs -, mas acho que ele foi um Gutemberg de nossos tempos. E por isso, talvez, as homenagens, mais ou menos exageradas, rendidas a ele.
    Beijocas,
    Sara

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  2. Você disse bem, Sara: "seu criador apresentava a nova criatura". É exatamente a transformação do objeto em sujeito!

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