Inspirada ao ler um texto do poeta Jeová Santana sobre Gabriel Garcia Marques, resolvi publicar aqui no blog uma resenha que escrevi há alguns anos sobre uma de suas obras, diga-se de passagem, a minha preferida, "O amor nos tempos do cólera", e sua adaptação cinematográfica. Não esperem os leitores uma crítica acadêmica ou um olhar técnico sobre o filme - eu reconheço a minha insignificância nesta área, eu não sou cinéfila, tratam-se apenas das minhas impressões pessoais sobre o filme.
O vírus do amor dentro da gente
Durante
uma viagem, há alguns anos, me hospedei numa pousada em que havia uma
biblioteca. Foi lá que, pela primeira vez, abri um volume de O amor nos tempos do cólera. Ao
contrário do que esperam os leitores, não vou dizer que fiquei o restante da
viagem com o livro entre as mãos, esquecida da paisagem e das pessoas que me
cercavam. Desse primeiro contato com o livro, ficou uma viva impressão do seu
primeiro parágrafo, que li sucessivas vezes. Em especial, a primeira frase:
“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino
dos amores contrariados”. Belíssima, sonora. Digna de ser lida e relida.
A primeira frase já prenuncia a
grandeza do livro e seu tema, nada inovador e sempre inesgotável: os amores
contrariados. Nas cerca de 400 páginas do romance, se desenrola a história de
Florentino Ariza, um telegrafista que, ao fazer a entrega de um telegrama na
casa de Lorenzo Daza, visualiza por uma janela a filha do comerciante, Fermina
Daza. A rápida visão foi suficiente para inocular um amor incurável, que
resistirá por décadas e transporá todos os obstáculos com paciência.
A epidemia do cólera se faz presente no enredo e
indica o estado sanitário da Colômbia – e de toda a América Latina – na passagem
do século XIX para o XX). Mas a principal doença de Florentino Ariza é o amor.
Por mais lugar comum que essa frase possa parecer, não podemos dizer o mesmo da
história de Florentino Ariza. O personagem do livro é um romântico, na sua
concepção e vivência do amor, nas maneiras de vestir e no modo de escrever
cartas. E o amor realmente lhe causa náuseas, dores, febres e suores, como uma
doença. Trânsito Ariza, a mãe que o concebera num caso de amor adúltero, e que
o criara, portanto, sem o pai, já casado, achava glorioso sofrer por amor. E
incentiva, a princípio, a overdose sentimental pela qual envereda Florentino,
numa longa correspondência amorosa com a jovem estudante Fermina Daza.
Um dos aspectos mais interessantes da obra,
portanto, é a construção do sentimento entre Fermina Daza e Florentino Ariza à
distância e, sobretudo, através da palavra. A valsa composta por Florentino
para a sua “deusa coroada” – tocada à distância, mas num local estratégico para
que o vento leve a melodia à sacada de sua amada – é uma imagem poderosa dessa
distância. E os códigos da paixão e da entrega amorosa (aparições fortuitas,
olhares, flores secas, cachos de cabelo) alimentam uma espera que se compraz
não apenas na perspectiva de realização amorosa, mas que se delicia em si
mesma. Florentino coloca a trança
colegial de Fermina Daza na parede, como um troféu ou uma insígnia religiosa,
longamente contemplada e adorada.
Fermina
Daza se apaixona pelas palavras de Florentino Ariza, pelo enredo de um amor
proibido (que ganha ares épicos na viagem que faz, forçada pelo pai, à sua
terra natal, para que ela cortasse relações com o telegrafista) e não pelo
moço, em si. Tanto
que, ao vê-lo a sua frente, real, palpável, tem a consciência súbita de que não
o ama. Percebe o que verbaliza páginas e páginas depois: trata-se de uma sombra
e não de um homem. O maravilhamento de Florentino diante da beleza de sua amada
contrasta com a confusão, o constrangimento e até mesmo a repugnância que ela
sente naquele momento em que os dois se encontram no mercado, depois da volta
de Fermina daquela longa viagem, quase um rito de passagem que sinaliza sua
mudança de menina para mulher.
A construção do amor pela palavra, portanto, é um
aspecto essencial do livro. Aspecto esse que se perde, em grande parte, na
adaptação do romance por Mark Newell. O filme, lançado em dezembro do ano
passado, transpõe para a tela os principais acontecimentos do enredo, de forma
coerente, mas não consegue transmitir os aspectos mais sensíveis e
significativos da obra.
Garcia Márquez relutou muito em vender os direitos
autorais de sua obra para o cinema hollywoodiano, e só o fez com a promessa de
que o filme seria fiel ao romance. Não podemos dizer que não o seja. Não há, no
roteiro de Ronald Harwood, cena ou episódio que não constem no livro. Porém, a
velocidade de encaminhamento do enredo, no filme (em frente à longa e
significativa espera amorosa que prevalece no romance), o torna uma história
bastante diferente. Quem assiste ao filme não consegue, de fato, perceber a
sensibilidade do livro. Os diversos símbolos da construção do amor entre os
protagonistas, citados acima, e o erotismo afetuoso do livro não são
aproveitados na adaptação cinematográfica.
Obviamente, qualquer adaptação cinematográfica de
uma obra literária requer recortes, encaixes, e um encadeamento cênico que
modificam a “velocidade” da apresentação da narrativa. Mas, no caso desse
filme, em específico, isso se torna mais problemático, uma vez que a passagem
do tempo é um dos temas da obra. Além disso, um outro aspecto que prejudica a
abordagem do tema da passagem do tempo é o fato de que a atriz Giovanna Mezzogiorno interpreta Fermina Daza na
juventude, quando adulta e idosa; já para o papel de Florentino Ariza, há dois
atores: , que o interpreta na juventude e Javier Barden, que o interpreta na
fase adulta e na velhice. Nesse sentido, o envelhecimento dos dois personagens
não parece ocorrer de forma simétrica, causando um certo estranhamento. A
interpretação dos protagonistas merece elogios, em especial a de Javier Barden,
que aparece, em muitas cenas, um tanto curvado, com olhares desculposos – quase
um gauche na vida, como diria
Drummond.
O filme possui uma boa caracterização de época e
ótima fotografia de Affonso Beato. Mas incomoda aos nossos ouvidos
latino-americanos ouvir o filme num inglês com sotaque latino, quando
esperávamos assistir um filme em espanhol (principalmente considerando a origem
latino-americana do romance, da trilha sonora, composta pela conterrânea de
Márquez, Shakira, e de boa parte do elenco).
Enfim, o filme decepciona quem espera ver Garcia
Márquez nas telas. O livro, sem dúvida, é uma obra prima da literatura
latino-americana, mas o filme não se enquadra na classificação de obra prima do
cinema.
Ficha Técnica
O Amor nos Tempos do Cólera
Love in the Times of Cholera
EUA, 2007 - 138 min
Romance
Romance
Direção: Mike Newell
Roteiro: Ronald Harwood, baseado no
livro de Gabriel García Márquez
Elenco: Javier Bardem, Giovanna
Mezzogiorno, John Leguizamo, Benjamin Bratt, Catalina Sandino Moreno, Liev
Schreiber, Fernanda Montenegro