segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Para além do riso

Na semana passada, tive a felicidade de lançar mais um livro. É muito emocionante ver que aquela história, aqueles personagens, aquelas palavras que moravam apenas dentro da minha mente ganharem forma e passearem por aí. Na última terça, falei sobre esse processo de dar forma aos personagens, sobre a "gestação" deles e suas peripécias. Se quiser conferir, é só entrar no link:

https://www.youtube.com/watch?v=XdIEFmBS7Kk

Durante este bate-papo, foi impossível não falar de umas das questões que permeiam a obra: a violência doméstica. Porém, há outro tema relevante na vida de Jéssica não mencionado no hangout (que encerrei falando do quanto eu ainda tinha por dizer sobre o livro): o racismo. Sim, Jéssica é negra. Não, isto não está escrito na primeira página, porque este fato não determina o caráter, a personalidade de Jéssica, embora seja importante na sua identidade e, principalmente, na visão que a sociedade tem dela. Uma sociedade que, obviamente, recusa-se a enxergar-se como racista, e que, por isso mesmo, está longe de superar seus preconceitos. Como eu disse anteriormente, o que não é nomeado não existe.
Mas não estou falando sobre mais um detalhe deste livro, simplesmente. Trata-se, mais uma vez, de uma forma de lidar com aquilo que me consome: quando a realidade me cutuca, escrevo. E eis que, coincidentemente, na mesma semana em que publico um livro que aborda as tantas veladas violências, presencio uma cena que me deixou profundamente chateada, e, mais, preocupada.
Entrando em uma sala de aula, um grupo de alunos ria, gargalhava, e parei para ouvir as piadas que contavam. Nesse momento preciso da história nacional, em que um caso de racismo foi levado à justiça; em que se discute em cadeia nacional o assunto, meus alunos contavam piadas racistas. A que eu ouvi era resumidamente assim: "Um homem estava se afogando, e o salva-vidas era, assim, moreno. Aí ele pulou na água, mas quando chegou perto do homem, ele empurrou o salva-vidas e disse: - Sai, cocô." Risos, gargalhadas. E eu, pasma. Mais que pasma, ofendida. Sim, ofendida, pois embora qualquer um que olhe minha foto diga que sou branca; embora eu jamais tenha sido discriminada diretamente pela cor da minha pele, eu sou um ser humano ainda capaz de se colocar no lugar do outro, ou lutando para não perder essa habilidade, tão em falta atualmente.
Tudo o que eu consegui me perguntar foi: será que estes jovens não assistem televisão? Não estão acompanhando o que está sendo discutido na mídia? E minha pergunta mais angustiosa: será que eles realmente acham que a cor da pele de uma pessoa ser mais escura faz com que ela possa ser comparada a um cocô? Será que eles não percebem que eles chamaram os negros (detalhe: nem se referiram a eles assim; precisaram do que consideram um eufemismo) de "merda"? Será...?
Ah, essa professorinha boba que se aflige por causa de uma piada, podem pensar os pragmáticos. Eu me aflijo. Esse episódio é mais uma bofetada a nos dizer o quão distante estamos de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa. E tenho certeza de que estes alunos não reconheceriam serem racistas. Não, imagina, eu tenho amigos negros. Há pessoas negras na minha família. Isso foi só uma piada, coisa boba... Afinal, o que tem de mais chamar alguém de macaco? Esse é o discurso cordial da maioria dos brasileiros. A minha resposta é muito simples: é "só uma piada" ou "uma coisa normal no estádio" enquanto não dói na nossa pele. É simples assim. Pense em uma criança que ouve desde pequena piadas como essa. Ela vai internalizar, mesmo que inconscientemente, que é uma merda. Ou que só faz merda. Ou que é um animal, um inferior (não foi essa a justificativa para que se usou para se escravizar o negro?). Se o leitor acha que exagero, converse com pessoas vítimas de preconceito racial (é muito fácil, todos os negros o foram, sem exceção). Converse sobre a percepção deles destas falas, destas piadas, dos olhares que eles recebem ao entrar em uma loja cara... se conseguir, pois o assunto não é fácil. É um tabu. Nesse sentido, recomendo também o vídeo abaixo, uma ótima entrevista com o rap Emicida:

https://www.youtube.com/watch?v=n7DcbOpKUw8

Espero que os leitores de "Janelas Abertas" também reflitam sobre isso a partir de algumas situações descritas no livro. Mas, mais que tudo, que essa sociedade que se julga sem preconceitos e sem tabus possa olhar com mais clareza para si própria. E que não se engane: o preconceito é perigoso. A discriminação é uma forma de desumanização, e ao olhar o outro como menos humano, autoriza-se a exploração, a violência, o extermínio. É isso que a história da humanidade nos conta. Afinal, o que tinha de mais em falar mal dos judeus? E retratá-los de forma ridícula e pejorativa nos livros destinados às crianças, na Alemanha de 1930? Todos sabemos o desfecho hediondo desta narrativa. É só trocarmos a palavra "judeu" pela palavra "mulheres" ou "negros" ou "gays" e teremos outras narrativas de violência, pois o a intolerância, o ódio e a violência andam juntos.

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