quinta-feira, 26 de março de 2020

Aquela que morre por último


Vou começar mais uma crônica falando do outono e que tenham paciência comigo... Eu amo o outono, a estação em que as coisas mais imprevistas ocorrem na minha vida e na qual,  assim como o azul do céu, tudo se torna mais denso. Mas nesses dias não pude deixar de lembrar daquele maravilhoso título do romance de Steinbeck, O inverno da nossa desesperança – porque parece que a desesperança generalizada chegou uma estação antes, nesse ano...
Antes eu me entristeci com as imagens do vazio das ruas de Roma, agora me entristeço com o vazio das ruas das nossas cidades; e me pergunto se a comoção que me tomou quando vi imagens dos idosos morrendo sozinhos e dos enterros vazios também vai se repetir daqui a pouco, de forma mais dolorosa, quando se passarem aqui. A insegurança nos toma ao pensar na irresponsabilidade, inépcia e perfídia dos nossos governos e elites (para usar palavras elegantes, ainda que não mereçam), que falam banalmente em alguns milhares de mortos como uma conta pequena a pagar para “salvar a economia” que já estava moribunda...
Mas diante de tudo isso, desse outono que parece inverno, eu olho para a minha estante e Carlos me diz mais uma vez para eu ficar firme, pois “havemos de amanhecer”. Cecília me diz também que “a vida só é possível reinventada” – então começo a reinventar esse outono difícil, ensaiando passos de dança na sala, testando receitas; nos intervalos da escrita da tese, rabiscando alguns versos e mandando mensagens cheias de amor, porque esse isolamento está criando uma multidão de carentes...



Então começo a reinventar ainda mais pensando no final dessa quarentena – e como tenho uma imaginação muito fértil, vejo a notícia nos telejornais: gráficos mostrando a queda dos contágios, pessoas festejando ao redor do mundo, jornalistas tentando pegar depoimentos de pessoas eufóricas pulando abraçadas nas ruas...
No Brasil, como tenho dito para todos os meus amigos, as festas juninas de 2020 serão inesquecíveis, com um sabor de liberdade nunca suspeitado; dançaremos as quadrilhas mais animadas do século. E estou até fazendo uma campanha para que as pessoas ponham em prática a letra de Valsinha, do Chico Buarque: serão tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais, que o mundo amanhecerá em paz! Pensando bem, esse será o outono da nossa esperança...
Tudo bem, podem dizer que estou viajando (tem coisa melhor, gente?), que sou sonhadora demais, que vivo no mundo da poesia. Mas quanto mais as notícias desafiarem minha alegria, mais versos eu faço! Só por coragem, como diria o Guimarães Rosa...

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