quinta-feira, 12 de maio de 2011

Rir de tudo é desespero

E por falar em rir do que é, na verdade, muito sério, tenho pensado muito, ultimamente, na capacidade crescente das pessoas, em geral, de rir de absolutamente tudo. Comecei a pensar nisso ainda quando era professora de ensino médio e percebia um imperativo do riso: tudo tinha de ser engraçado. Toda aula deveria divertir os alunos. Coisa que me desgostava muito, pois há momento para tudo sob o sol, como diz o Eclesiastes. Há assuntos que não são, de forma alguma, risíveis. Como fazer piada, por exemplo, ao dar uma aula de Vidas Secas? É possível fazer piada com a fome, a miséria, a dor das pessoas?
Segundo nosso comediante Rafinha Bastos, atual âncora do CQC, programa exibido pela emissora Bandeirantes, é possível. Ele realmente está levando a sério a sigla do programa, e quer fazer humor custe o que custar. A mais nova piada polêmica do humorista (?) foi dizer:

"Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia... Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço".

Antes de mais nada, é bom reforçar que provavelmente Rafinha Bastos não conhece nem encontrou pessoalmente nenhuma mulher que foi estuprada. Provavelmente, o estupro, para ele, é uma realidade distante, o que lhe permite fazer uma piada sobre ele. Mulheres estupradas, feias ou bonitas, carregam sequelas eternas. É o tipo de violência mais brutal e humilhante que uma mulher pode sofrer. E fazer piada sobre isso é desrespeitar todas as mulheres que foram vítimas desse crime.
Mas o desrespeito não para na figura do humorista, mas atinge aqueles que riem da piada. Essa é a parte mais preocupante da questão. Antes de hipocritamente crucificar Rafinha Bastos, é importante perceber que ele apenas verbalizou o que muita gente pensa: que estupro pode ser confundido com uma relação sexual, que mulheres podem ser pegas à força, usadas e gostarem disso. Um raciocínio torto, eu diria, doentio, e que provavelmente está no inconsciente (tenho esperança que esteja no inconsciente, e não no nível racional, o que seria bem pior) das pessoas que riem de uma piada como essa.
Li comentários em blogs e notícias on-line alegando que a reação à fala de Rafinha Bastos é censura. Acredito que essas pessoas precisam refletir mais devidamente sobre essa palavra. Repudiar o que uma pessoa disse, exigir que ela assuma responsabilidade pelas ideais que veicula não é censura, é debate. Ao contrário do que dizem por aí, isso só reforça a democracia. Afinal, a imprensa se vale muito do argumento da censura para sair veiculando qualquer coisa e se esquivar de suas responsabilidades sociais. Censurar é calar, é impedir que se fale. Foi o que fizeram (e ainda fazem, em vários lugares e contextos) com as mulheres durante muito tempo. Creio que elas não podem, não devem ficar caladas diante de uma piada (?) como essa, tão desrespeitosa de sua dignidade, identidade e direitos.
Episódios como esse me entristecem por perceber que estamos muito longe da civilidade e do respeito que apregoamos ideais para nossa sociedade. É lamentável que um humorista e apresentador de TV não tenha consciência da sua responsabilidade enquanto pessoa pública e formador de opinião, que seja leviano a ponto de fazer apologia de comportamentos preconceituosos e até criminosos, quando influencia milhares de jovens que o seguem. Espero que só no Twitter. Vamos ter esperanças de que não sigam as ideais absurdas que ele apregoa.
É muito preocupante que situações de violência incitem o riso. Isso me faz retornar à questão inicial desse texto: a necessidade histérica de rir de tudo. Que me parece uma espécie de anestésico, pois impede que se enxergue o problema real, permite que se continue na mais completa inação sem que a consciência cobre qualquer coisa. Para essa sociedade que ri de tudo, falta filosofar um pouco. E nem precisamos chegar em Sócrates & Cia, basta pensar um pouquinho em dois versos de uma canção que toca nas rádios brasileiras (se não me engano, gravada por Frejat): "Que você descubra que rir é bom/ mas que rir de tudo é desespero".

2 comentários:

  1. Oi, Lia! Tudo bom?

    Ótima a sua crítica. No ponto, como sempre. Fiquei impressionada com o comentário do apresentador (que só conheci agora, por meio do seu texto, já que nunca fui com a cara do CQC). É realmente de chorar. Ele disse essa barbaridade no Twitter, é isso? Tomara que tenha que pagar caro por isso, para aprender que "a internet é escrita com tinta", como diz a personagem da Rede Social.

    bjs e bom resto de domingo.
    Dani

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  2. Muito bom, Lia! Vou usar esse texto para fazer uma discussão em aula com os alunos sobre o tema do "humor a qualquer custo". Tenho algumas ideias fervilhando... precisamos conversar. beijos, Van

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