segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Havemos de amanhecer?

Já escrevi neste blog que quando a realidade me cutuca, eu preciso escrever. Mas tem dias que a realidade me esmaga - o peso da fatalidade, o fato consumado que repete o que parece não mudar nunca... É assim que eu tenho me sentido todas as vezes que leio as notícias sobre os conflitos entre Israel e a Palestina, ou melhor dizendo, sobre o massacre cruel que Israel está comandando sobre uma população indefesa.
Há dias tenho pensado e tentado escrever sobre isso, mas foi em uma sala de aula que consegui partilhar minhas ideias e angústias sobre o assunto. Ser professora me dá muitas oportunidades - não apenas de falar de literatura, de partilhar meu conhecimento sobre algo que é tão vital para mim, mas sobretudo de ter o consolo de, através de versos e poemas lidos e compartilhados, encontrar ao menos um alívio para as minhas tantas indagações.
Na semana passada, eu estava no 3º ano do Colégio Dom Barreto e começamos a ler Drummond, mais especificamente os poemas de "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do Povo". E de repente, o espanto: não parecia que o poeta mineiro escrevia em meados da década de 40. Quando comecei a declamar "A noite dissolve os homens", quase pude imaginar o risco das palavras no papel naquele exato momento:

A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...

O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.


Pensei nas imagens vistas no dia anterior, de crianças palestinas mortas, de hospitais e escolas bombardeados. A noite cai, tremenda, sem esperança, neste exato momento. A noite, a escuridão da violência, do ódio, da intolerância dissolve os homens, dissolve sua humanidade e não se vê mais irmãos - são todos inimigos. Uma noite completa e sem reticências - apenas um ponto que finaliza tudo, que inutiliza até o sofrimento. Os suicidas têm razão.
Senti que muitos alunos se deixavam levar pelo peso das palavras, pela minha voz também pesada. E interrompi a leitura do poema e perguntei a eles: "Não parece que a humanidade anda em círculos"?
Alguns assentiram imediatamente com a cabeça, outros me dirigiram os olhos interrogativos. Então expus meu pensamento: quando Drummond escreveu estes versos, a noite caía especialmente sobre a comunidade judaica. Milhares de judeus indefesos foram mortos no maior genocídio da história. E agora, décadas depois, a nação criada para eles no pós Segunda Guerra Mundial, como forma de indenizar tantos sofrimentos, é que comanda o genocídio. Sim, genocídio, esta palavra assustadora, tenebrosa. Ontem, vítimas; hoje, algozes. Mas independente de nacionalidades ou orientações religiosas (não é este o ponto da reflexão), parece-me que a humanidade tem sempre girado nesta roda-viva, em que alternam-se vítimas e algozes, mas eles sempre existem, reproduzindo eternamente a violência extrema de que o ser humano é capaz.
Aí eu percebi o desalento no olhar de alguns, a perplexidade no de outros, em um silêncio raro nas salas de aula atuais. Aí senti que era o momento de terminar minha leitura:


Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para cobrir tuas pálidas faces, Aurora.


Eu me envolvi tanto na declamação destes versos que não me contive e, em um gesto espontâneo, abracei o livro que tinha nas mãos e disse: "Obrigada, Drummond". Alguns alunos sorriram, aquele riso complacente de aluno que acha a professora louca. Mas foi essa a minha reação mais sincera, agradecer ao poeta que me convidava a acreditar na  Aurora, ainda que seja tímida e inexperiente. Perguntei aos alunos o que eles pensavam sobre esta segunda estrofe, e muitos citaram palavras como "fim da guerra", "esperança", "reconciliação entre os povos". 
O mais bonito, para mim, é que Drummond não faz uma oposição entre a noite e o dia. Ele sabia que o dia e sua claridade, sua alegria, sua certeza ainda estavam distantes. Mas ele fala da aurora, essa promessa da manhã de paz que se estende sobre o mundo. Uma aurora que transforma o sangue da violência no tom rubro do céu que anuncia a chegada do sol. Uma aurora em que a fadiga cessa, em que o perdão e sua maciez se concretizam nas mãos que se enlaçam. 
Obrigada, Drummond! É tudo que sei dizer. Minha carne também estremece na certeza da vinda desta aurora, embora a manhã tarde há tantas décadas, talvez desde sempre. E esta demora muitas vezes me faz estremecer na dúvida: havemos mesmo de amanhecer? 

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