segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sociedade dos poetas vivos


Neste último sábado, a sala Carlos Gomes da Livraria Saraiva, em Campinas, foi sacudida por calorosa discussão, na 3ª edição do Projeto 1001 Leituras. O poeta, ficcionista e dramaturgo premiado, Marco Catalão (autor de livros como Cânone Acidental, A face neutra e Agro Negócio) chegava com uma afirmação polêmica: a de que não existe, na literatura ou em qualquer outra arte, o talento inato. Afirmação às vezes incômoda para uma sociedade que, influenciada pelos ideais cristãos (sobretudos protestantes), e mais recentemente, pela ideologia estadunidense (propagada à exaustão pelo cinema hollywoodiano), espera pelos eleitos: aqueles que teriam sido agraciados com o dom. Ou, em uma linguagem menos mítica, os que nasceram mais inteligentes ou com mais aptidão que a maioria para determinadas atividades ou áreas do conhecimento ou da arte.
Catalão afirma categoricamente que não existem eleitos, e sim, pessoas que foram expostas a determinadas condições que favoreceram seu aprendizado, sua pesquisa, sua assimilação tão profunda de um conhecimento ou linguagem a ponto de se tornar um especialista, um campeão, um vencedor de prêmio Nobel. Obviamente, a afirmação gera questionamentos: se qualquer um pode ser um escritor, artista ou cientista por ter sido exposto a tais condições, por que então alguns se destacam? O poeta, também doutor em Letras pela Unicamp, atribui isto às diferenças individuais: não somos todos iguais e não reagiríamos da mesma forma aos mesmos estímulos. Não se trata de determinismo, não somos meros joguetes do meio. Mas sem ele, jamais desenvolveríamos qualquer talento, ele afirma com convicção.
Concordar ou não com estas afirmações não vem ao caso: o que nos interessa é onde Marco pretende chegar em sua tentativa de desconstruir um valor tão arraigado em nossa sociedade. Voltando seu discurso exclusivamente para a criação literária, ele aponta uma das consequências da crença no talento inato: o não investimento na formação do escritor. Afinal, se alguém nasce com o talento, não é preciso passar horas lendo e discutindo textos literários, nem dias e dias escrevendo e reescrevendo textos, nem conhecendo seus pares e o que eles escrevem e publicam. Para Catalão, seria esse o empecilho para que chegássemos a um nível internacional de excelência e reconhecimento na literatura, conforme aconteceu há pouco com a matemática, com a nomeação de Arthur Ávila para a Medalha Fields.
Os que não foram perderam uma acirrada discussão sobre a necessidade ou não de estudos (sejam de natureza teórica ou prática) de forma institucionalizada para a formação de um escritor, haja vista que tantos bons escritores brasileiros constituíram suas obras sem um estudo institucionalizado e muitas vezes conciliando a atividade criativa com outras atividades profissionais. O que importa, de fato, não são as conclusões às quais chegamos, mas a pergunta lançada, o incômodo da indagação.
Toda mudança começa com um incômodo - e é sobre ele que quero falar, na esperança de que algo mude. A fala de Catalão me provoca dúvidas, mas também algumas luzes. Como escritora e, sobretudo, como professora de literatura, estou sempre refletindo em como as pessoas concebem e consomem a literatura, e um fato nas últimas semanas me fez voltar a imagens e ideias já visitadas: a morte, há cerca de uma semana, do ator Robin Williams. Um dos papéis mais famosos deste ator é o de um professor de literatura, no filme Sociedade dos poetas mortos. Assisti a este filme, muito famoso nos final dos anos 80 e começo dos 90, aos 12 anos. Estava começando a escrever meus primeiros versos. O filme me encantou, como a muitos da minha geração, que colocaram algumas suas cenas no Facebook em homenagem póstuma ao ator.
Neste filme, o professor entusiasta procura levar seus alunos a perceberem que a literatura não é algo a ser estudado com gráficos, mas algo a ser sentido intensamente, quase visceralmente. Se durante a adolescência esse filme representou minhas próprias ideias sobre a literatura, eu que delirava com a então recente descoberta pessoal de Castro Alves, Manuel Bandeira e Emily Dickinson, depois de me tornar professora e escritora, comecei a vê-lo com outros olhos. A pensá-lo em suas entrelinhas, nas quais vejo algumas ideias questionáveis sobre a literatura e seu ensino. A pensar que precisa existir um meio termo entre o gráfico e as vísceras.
Sim, literatura é arte, e enquanto arte, constrói-se por caminhos marcados pela subjetividade. Em outro post deste blog, eu afirmo que escrevemos para iludir o tempo, para driblar a morte. Já escrevi por diversão, já escrevi por amor, já escrevi por exasperação, por raiva e por vingança. Quem me leu, lê e lerá, sentirá tudo isto? Não sei - o espaço interativo da leitura também é marcado por subjetividades. Mas uma coisa eu posso afirmar com certeza: não foram meus sentimentos que foram escritos sobre o papel. Como disse o poeta Drummond, em "Procura da Poesia":

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


O que escrevi foram palavras. E foi o longo aprendizado das palavras, a longa convivência com a palavra escrita e literária que fez com que eu me tornasse escritora. Talvez se, desde minha infância, eu tivesse feito aulas de balé, eu seria bailarina, eu materializaria algo destes sentimentos no movimento e não na palavra.
Mas, neste filme, este professor de literatura apresenta-a como mera emoção condensada. É memorável, para mim, uma cena em que o professor incita um dos alunos, que não tinha feito a tarefa de escrever um poema, a compô-lo instantaneamente, de olhos fechados. Segue-se uma espécie de transe em que o garoto declama uma torrente de palavras poéticas. O poema surge, brota magicamente, lindo, perfeito, surreal. Porque já estava ali, no ser que o profere, aparentemente, desde sempre.
Isso seria possível? Talvez. Já tive a felicidade de escrever um poema em um momento que poderia ser chamado de "inspiração". Um momento em que as palavras vieram e as escrevi como vieram e daí surgiu aquele que considero um dos meus melhores poemas, "Mnemoteca". Mas ele não surgiu magicamente na minha mente quando eu tinha 12 anos, mas praticamente aos 30, quando eu já havia acumulado quase duas décadas de leituras e de escrita de textos literários. O que parece um "transe" pode ser visto como um transbordamento de uma linguagem internalizada, com a qual convivi de tal forma que ela passou a fazer parte da minha identidade.
Lembrei-me num flash da cena fílmica que descrevi acima, quando Catalão, em sua palestra, falou das consequências da ideia do talento inato no ensino de literatura, no qual privilegiamos os autores canônicos e os reverenciamos como se eles tivessem produzido toda sua obra em um transe, e não em um processo repleto de questionamentos, hesitações, tentativas e erros. Assim, não damos espaço aos escritores contemporâneos, que estão em processo. E assim reforçamos a imagem da literatura como algo distante, restrito a poucos iluminados, portanto inacessível a nossos alunos. E, por conseguinte, desinteressante à maioria.
Voltei para casa com a sensação de que urge formarmos a sociedade dos poetas vivos.

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