sexta-feira, 10 de maio de 2019

A ameaça do (e ao) conhecimento

Toda vez que sou convidada para uma palestra, uma mesa, um bate-papo sobre literatura eu me sinto honrada. É uma honra para mim compartilhar a minha experiência com a literatura, tanto na pesquisa quanto na escrita ficcional ou na docência, e poder escutar e aprender com a experiência de tantas pessoas que constroem a cultura nesse país, ao longo de uma vida de muito trabalho.
Foi assim nesta semana, na mesa “Coleções literárias para a formação de leitores”, no IFSP-Pirituba. Mas a minha honra maior foi escutar. Não apenas porque Jiro Takahasi (o outro componente desta mesa onde repartimos o pão das palavras) é um editor veterano, premiado, que tem tanto a nos ensinar sobre a produção editorial no Brasil, especialmente sobre as renomadas coleções Vagalume e Para Gostar de Ler, que formaram gerações de leitores no Brasil. Mas também porque este editor afirmou, em vários momentos da sua fala, que todo o seu trabalho de décadas na área editorial só existe e faz sentido porque há leitores, citando a famosa frase de Borges: “Outros que se vangloriem dos livros que escreveram, eu me vanglorio dos leitores que tive”. E estendendo-a à atividade docente (já que Jiro também é professor), terminou sua fala agradecendo por falar de sua experiência a alunos de Letras, parodiando o escritor argentino: “Outros que se vangloriem das aulas que deram, eu me vanglorio dos alunos que tive”.
Em uma semana em que se anunciaram cortes no orçamento da educação pública e de bolsas de fomento à pesquisa, a fala de Jiro Takahashi é mais que um consolo, mas um convite à resistência. A mim, ela trouxe uma certeza: a de que toda a pesquisa na área de Linguagens e Ciências Humanas faz sentido porque há leitores e alunos que precisam dela. Falamos de coleções editoriais voltadas para um público jovem em formação, tanto em termos de leitura quanto de cidadania, e do quanto essas coleções são importantes para o contato do jovem com uma literatura que faça sentido para ele, que o represente e, ao mesmo tempo, apresente-lhe um mundo que excede as fronteiras da sua casa, da sua escola, do seu bairro, da sua cidade. Mas também falamos das limitações dessas coleções, da conflituosa relação entre educação, mercado e literatura juvenil – já que imperativos econômicos e didáticos influenciam na produção dos livros destinados a este público.
Tais conflitos se mostram presentes nos discursos políticos atuais, quando se coloca o professor como alvo de vigilância da sociedade, cerceado inclusive na escolha das leituras a serem feitas por seus alunos. Porque sabemos que a leitura foi e continua sendo vista como uma atividade perigosa, caso não seja bem orientada. Entenda-se orientação como um exercício de controle que vai desde a escolha de conteúdos que são ou não adequados à leitura e ao debate em sala de aula, até ao “monitoramento” da interpretação de textos, disfarçado sob a forma de roteiros de leitura, apostilas, nivelamento e homogeneização das avaliações de literatura e outros recursos didáticos. Assim, o risco de o jovem começar a pensar e questionar os valores que recebeu desde sempre é bem menor. Obviamente, nada disso é dito com clareza, talvez sequer pensado com clareza, mas diluído nas boas intenções de facilitar a leitura e torná-la mais útil para os jovens, bem como orientá-los moralmente. 


   
Teme-se que o jovem viaje sozinho pelas páginas dos livros, porque isso pode desviá-lo dos caminhos considerados certos – e são exatamente os desvios que trazem as surpresas que nos fazem pensar. Por isso, o conhecimento sempre foi considerado uma ameaça por aqueles que detêm verdades absolutas e que querem manter o poder a qualquer custo. É muito claro que o desmonte da educação pública e dos programas federais de fomento à pesquisa é um projeto, com motivações e implicações não apenas políticas, mas sociais e econômicas. Diante disso, mais do que nunca, temos a convicção de nosso papel enquanto pesquisadores e professores das universidades públicas: produzir conhecimento que atenda não apenas demandas imediatas (da medicina, da engenharia, da indústria), mas que desenvolva formas de questionar a própria produção de conhecimento, seus discursos, suas metodologias, seus limites e potencialidades. Só assim promoveremos uma educação de qualidade, que excederá os discursos eleitoreiros e das instituições de ensino.
Porque a leitura e a reflexão precisam exceder os limites da escola, da aula de língua portuguesa e literatura. Ao final da instigante discussão sobre as coleções literárias para a formação de leitores, um aluno nos perguntou nossa opinião sobre a crise do mercado editorial. Livrarias falindo, pequenas editoras fechando, grandes grupos editoriais em déficit. Algo que parece ser uma crise no sentido financeiro é também um sintoma de uma crise mais ampla, de valores, na qual podemos perguntar qual o valor do livro, e, especialmente, da leitura literária, ou mais amplamente, da cultura letrada, no atual contexto social. E não há como falar disso sem falar de uma educação que realmente forme leitores, que continuarão lendo para além dos anos escolares. Editoras nunca terão público suficiente em um país de analfabetos funcionais. Por isso, é preciso que elas se lembrem de seu principal foco: os leitores, seu desenvolvimento e o de uma relação especial com os livros. 

Um comentário:

  1. Obrigadíssimo pelas palavras generosas. Fico muito honrado com elas e por ter dividido uma mesa tão rica nas nossas trocas de ideias com um público tão interessado quanto preocupado com a formação do leitor. Beijos. Jiro.

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