De repente
surgiu aquele carro. Do nada surgiu aquele carro. Ela freou com toda a força e
sentiu o cheiro do pneu queimando o asfalto. Quando o carro parou, a milímetros
do outro, ela fechou os olhos, as pernas bambas, nem ouvindo o palavrão do
motorista que estava atrás. Pesava-lhe o corpo. Não era apenas a descarga de
adrenalina. Pesava-lhe o corpo pelas tantas noites pouco ou mal dormidas.
Pesavam-lhe as pálpebras pelas lágrimas não derramadas. Pesava-lhe a alma sem
asas.
Lentamente
relaxou os dedos que, ato reflexo, apertavam com força o volante. Respirou
fundo, os olhos ainda fechados, repetindo baixinho “Não foi nada, não foi
nada”, como um mantra que lhe devolveria o domínio das pernas. Foi despertada
subitamente pelo barulho das buzinas. O sinal abrira e a longa fila de veículos
reclamava seu direito de seguir a vida. Ou ao menos o caminho para o trabalho,
para a escola, para o banco, para qualquer instituição que lhe engoliria a
vida. Ainda trêmula, ela ligou o carro, engatou a primeira marcha, colocando-se
em marcha novamente na procissão urbana. “Vai passar”, pensou. Repetiu algumas
vezes. Mentiras repetidas à exaustão acabam se tornando verdades, com ela
haveria de dar certo.
Mas não
passava. Sentia na garganta a náusea. Os dissabores de anos, engolidos a seco,
o medo de perder o emprego, de não conseguir pagar as parcelas do financiamento,
noites em claro pensando se teria coragem de pedir o divórcio, a indiferença da
família, a angústia de não se sentir bonita apesar de todas as dietas e todas
as roupas novas, tudo lhe subia do estômago, mistura acre de nervosismo, dor e
frustração. O sinal vermelho. Pare. Pare com isso. Ela repetiu: vai passar.
Mas não
passava. Olhou seus olhos no retrovisor. Antes perfeitamente delineados, agora
eram duas manchas horrorosas, entre o roxo e o acinzentado. Ela passou a mão
pelos olhos, pelo rosto, assim que freara bruscamente para evitar o acidente,
espalhando a maquiagem mecanicamente feita naquela manhã. Ela passou a mão pelo
rosto novamente, com cuidado, como se as manchas sobre os olhos fossem dois
hematomas, duas bofetadas da vida. A carícia leve pela pele do rosto trouxe-lhe
um breve meio sorriso. Há tanto tempo ela não se acarinhava, nem em gestos nem
em palavras. Demorou-se no gesto, sentindo a ponta dos dedos desenhando os
lábios, o nariz adunco, os cílios, as rugas, a linha de expressão entre as
sobrancelhas, escavada pelas preocupações.
Novamente o
sinal verde, siga, as buzinas gritando: siga. Sempre em frente. Mas as pernas
se recusaram. Ela novamente olhou seus próprios olhos no retrovisor. Há muito
não se olhava nos olhos. Há muito não se encarava para não precisar reconhecer
a dor, para não precisar dizer as verdades. E se olhando nos olhos ela soube –
amava-se ainda. Quase tinha se perdido, mas era tempo. As buzinas continuavam,
carros resfolegando como animais enraivecidos, motoristas a ultrapassavam
gritando palavrões inaudíveis pelos vidros fechados, mas ela só olhos para os
seus olhos, ouvidos para o silêncio que a tomava, um silêncio de compreensão.
Como se tivesse
emergido de águas profundas, ela de repente ouviu o barulho ao redor. Atrás
dela, um motorista manobrava, tentando ultrapassá-la, e, logo o fez, o sinal
fechou novamente. O homem gritava e fazia gestos impacientes e obscenos. Como
se tivesse acordado de um sono profundo, ela acompanhava com esforço seus braços
enfáticos. Achou graça, era como se ele fosse um daqueles bonecos infláveis
colocados na pista para sinalizar obras, movendo desengonçadamente os braços.
Ela começou a rir. E de repente, seus olhos desceram e se fixaram na placa do
carro: FLY 3003.
Leu
novamente, agora em voz alta, a placa do carro. Notou que as letras formavam
uma palavra em inglês. E os números, curiosamente, formavam um número que
continuava o mesmo ao ser lido em ambas as direções. Como se chamavam esses
números? Não se lembrava. Mas sabia o que significava a palavra, significava
voar. Ela sabia por causa da única viagem internacional que tinha feito. Três
mil e três. Também podia ser trinta zero três. Trinta do três. Sua data de
nascimento. Como era mesmo o nome desse tipo de número?
Novamente o
verde tomou conta dos semáforos e ela ligou o carro, ainda pensando no nome.
Paráfrase? Paranomásia? Tinha certeza de que começava com “pa”. Voar. Não podia
ser “voe”? Não podia ser um convite? PALÍNDROMO! A palavra veio inteira em sua
mente, em caixa alta. Era isso! Número palíndromo. Mas agora não era mais. Não
era mais 3003! Era 30.03. Voe, 30.03! Era um convite, ela teve certeza agora.
Um convite para as pessoas nascidas no dia 30 de março voarem. Um convite para
que sua alma ganhasse asas.
Ela prosseguia
na longa avenida, agora as pernas obedeciam, a respiração se controlava, as
mãos firmes, mas não mais tensas no volante. Dirigia como se a longa avenida
não tivesse fim, e só muito depois percebeu que perdera a saída que a faria
continuar no trajeto para o trabalho. Fez o primeiro retorno que encontrou.
Sim, chegaria atrasada no trabalho. Mas estranhamente, essa conclusão não a
afligiu. Dirigia devagar, como se nada ou ninguém a esperasse.
Quando entrou
na sala que dividia com mais três colegas, notou olhares estranhos. Passou a
mão, instintivamente, pelo rosto. Era a maquiagem borrada que criava aqueles
pontos de interrogação nos olhos alheios? Ou era a flama que se via em seus
próprios olhos? Não quis se explicar. Não queria palavra que rompesse aquele
silêncio que a abraçava, compreensivo e benfazejo. Então apenas sentou-se em
sua mesa. Diante do computador ainda desligado, um origami. Ela não sabia como
aquele passarinho tinha vindo parar ali, mas sabia que, mais uma vez, eram as
asas de que sua alma precisava tanto, tanto...